domingo, 23 de novembro de 2014

O mar e a poça


A casa velha, parada,
Desolada, milenar,
Tem aranhas na entrada
Onde ninguém quer entrar.

Tem uma poça cá fora
Onde se pode brincar.
Ninguém sabe quem lá mora
Nem ninguém lá quer morar.

Todos brincamos na poça,
Mesmo suja e lamacenta,
E fazemos até troça
De quem disso se lamenta.

Houve em tempos quem dissesse
Que a casa levava ao mar
A quem quer que se atrevesse
A abrir a porta e entrar.

Mas é tão triste a fachada
Da casa que leva ao mar,
Que a poça mais desgraçada
Lhe usurpa o justo lugar…

22/11/2014

Fernando Henrique de Passos

(também em Outras Direcções, neste blogue)

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Abrir a porta a Deus


«Vinde, benditos de Meu Pai, recebei em herança o Reino
que vos está preparado desde a criação do mundo»
Mt 25, 34

«Deus está lá fora. À minha porta. Eu estou cá dentro. E digo que Deus não tenta falar comigo. Que Deus não me dá o mais ínfimo sinal. Que Deus provavelmente nem existe. Mas, se olhar bem para o fundo de mim mesmo, vejo. Vejo que sei que Deus está lá fora. À minha porta. E vejo ainda mais. Vejo que não lhe abro a porta por temer ter de renunciar a muitas coisas. (…) Mas olhando ainda mais fundo dentro de mim mesmo (…) vejo que todas essas coisas, a que tanto apego tenho, [nada são] ao pé dos tesouros não sonhados que Deus tem para me oferecer.»

Escrevi isto há mais de cinco anos. Entretanto, acabei por deixar entrar Deus. (Ele foi muito persistente. Mesmo correndo o risco de parecer blasfemo, tenho de confessar que já não O podia ouvir a bater à porta!) Desde então, a minha vida começou a mudar muito, e para melhor. Por isso, gostava de conseguir ajudar outras pessoas a dar o mesmo passo que eu dei.

Para começar, a melhor ajuda que posso dar é pedir que desliguem a ideia de Deus de todas as palavras, símbolos e conceitos a que ela está geralmente associada na cultura ocidental. Qualquer descrente ocidental que me esteja a ler neste momento, se rejeita Deus, rejeita certamente todo o “folclore” que entre nós o costuma acompanhar, e não é caminhando por um átrio repleto de imagens que abomina que se poderá aproximar dele.

Encorajo então o ateu ou agnóstico que passa os olhos por estas linhas a pensar em Deus de uma forma muito mais abstracta, esquecendo até, se necessário, a própria palavra “Deus”, e imaginando apenas, no seu lugar, uma sabedoria muito antiga, escondida no interior de todas as coisas, mas escondida sobretudo nas profundezas de cada ser humano, talvez nas regiões recônditas do inconsciente, onde a Psicologia já chegou, ou em territórios ainda mais ocultos, que a Ciência terá de cartografar um dia.

Uma sabedoria muito antiga, sim, mas sobretudo uma sabedoria boa, que só nos deseja tudo aquilo que todos nós sempre quisemos alcançar, tudo o que resumimos na palavra “Felicidade”, embora tantas vezes confundamos felicidade com coisas que só nos tornam infelizes, a nós próprios e aos outros.

Quando conseguimos começar a ouvir o murmúrio permanente dessa sabedoria universal, à qual, vá-se lá saber porquê, os ouvidos das pessoas se vêm tornando cada vez mais surdos, as primeiras lições que deciframos ensinam-nos, por exemplo, que somos tanto mais felizes quanto menos desejamos sê-lo, porque esta sabedoria parece não fazer muito caso do senso comum, e chega a desafiar os dois pilares fundamentais da lógica tradicional, o Princípio do Terceiro Excluído (entre SIM e NÃO não há outra alternativa) e o Princípio da Não Contradição (não pode ter-se ao mesmo tempo SIM e NÃO).

Mas isso são assuntos de que poderão falar outras pessoas, pessoas que conheçam Deus muito melhor do que eu, como por exemplo os teólogos. Ah, voltei a falar de Deus, em vez de falar de Sabedoria! Mas não faz mal: no fim perceber-se-á que mesmo as coisas mais ridículas que vinham sempre agarradas à ideia de Deus, mesmo essas coisas, passam a ter todo o sentido quando iluminadas pela luz da “sabedoria ancestral do universo”.

O que não quer dizer que tudo sobreviva da ideia tradicional de Deus no ocidente. Não sobreviverá certamente um Deus que fica ofendido por não reconhecermos a sua ajuda, ao preferirmos atribuí-la a uma vaga “sabedoria”. Deus não é esse ser mesquinho que quer ser louvado, adorado e glorificado, esse Deus que nós, homens, construímos à imagem e semelhança dos nossos egos. Ele quer desesperadamente ajudar-nos porque nos ama, não porque queira receber louvores.

“Desesperadamente”? Pode aplicar-se esta palavra a Deus? Sim, em certo sentido, porque Deus também não é um ser omnipotente, como nós o idealizámos, necessitando, pelo contrário, que colaboremos com ele na nossa própria salvação.

Mas, acima de tudo, Deus não é um ser ─ Deus é o Ser, e o único verdadeiro mistério que devia preocupar os teólogos devia ser o mistério de o Ser único aparecer pulverizado em tantos biliões de pequenos seres: nós, seres humanos, e toda a restante “Criação”. (Efeito perverso do Tempo, avento eu, que funciona como o prisma de Newton, decompondo a unidade da luz branca em infinitos e diversos cambiantes. A unidade do Ser só será então reencontrada da perspectiva da Eternidade.)

Por isso, quando Deus nos ajuda, o que estaria realmente a acontecer seria “Deus a ajudar-se a si próprio”, ou “nós a ajudarmo-nos a nós próprios”, se o pudéssemos exprimir. Mas o que está realmente a acontecer é qualquer coisa completamente inexprimível pelas nossas palavras, pelos nossos conceitos, pela nossa lógica. Apenas isto é certo: não há ninguém à espera de ouvir “muito obrigado”…

20/11/2014

Fernando Henrique de Passos

(também em Terra de Ninguém. neste blogue)

sábado, 15 de novembro de 2014

O silêncio


«Jesus perante Herodes: "Fez-Lhe muitas
perguntas, mas Ele nada respondeu.
Os príncipes dos sacerdotes e os escribas
que lá estavam acusavam-n'O insistentemente"» 
Lc 23, 9-10

As palavras são tão carregadas de ambiguidade que ninguém consegue responder com palavras à violência das palavras, sem cair em outra violência. Por isso, o silêncio é a resposta para os que nos perseguem, como ensinou Jesus Cristo. 


Teresa Ferrer Passos

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Sonar


AH!...

O cheiro a água fresca que vem do fundo do abismo
Envolto em reflexos de cores desconhecidas
E sons silenciosos como agulhas
(Prata caindo no veludo negro)
E o sabor do sal, da terra e das sementes
E sentir o óleo sobre a pele
Como memória nova de um baptismo

AH!...
(o eco no fundo do abismo…)

13/11/2014


Fernando Henrique de Passos

NOTA: O sonar é uma espécie de radar, mas no qual se usam ondas sonoras em vez de ondas electromagnéticas. Um sonar instalado num navio, por exemplo, permite determinar o relevo do fundo do mar através da análise do "eco" que este devolve, quando atingido por ondas sonoras enviadas desde o navio.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

A lógica de Deus

(1515-1582)

a ser verdadeiro
o Princípio do Terceiro Excluído
excluiria do mundo a Santidade
que se situa na Terra de Ninguém
entre o Possível e o Impossível


11/11/2014

                      Fernando Henrique de Passos

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Esposa

 

Violeta guardando do orvalho
Como pérola a gota preciosa,
Presente matinal de que me valho
Se a tarde é seca e tenebrosa;

Princesa de épocas passadas,
Lenda que beijo, que abraço e que possuo,
Lagoa de fetos e esmeraldas
Onde eu, regato, desaguo;

Mel de abelhas criadas num vulcão,
Força da lava, sabor da alfazema,
Tinta dourada da paixão
Com que registo a cores este poema.

10/11/2014

Fernando Henrique de Passos

sábado, 8 de novembro de 2014

Do Deus de Einstein ao Deus dos cristãos




ao meu Pai, que hoje faria 91 anos, e que me falava muito de Deus,
mas também me falava de Einstein, de Newton e de Arquimedes

Durante dezenas de anos, incluindo um longo período de agnosticismo, sempre achei absurda a forma como Einstein falava de Deus, parecendo identificá-lo com a harmonia das leis do universo, ou com qualquer coisa de ainda mais vago e abstracto. Foi o livro Einstein and Religion, de Max Jammer, que me fez perceber melhor a sua atitude face à religião. (Obrigado ao Paulo Martel pelo oportuno presente!)

Se tentarmos isolar a essência do sentimento religioso, talvez encontremos isto: a consciência de que são os nossos medozinhos ridículos e os nossos desejozinhos ridículos que nos tornam infelizes, e de que eles não são nada ao pé de uma certa realidade gigantesca, esmagadora, abrasadora, cuja existência pressentimos, mesmo que às vezes não a consigamos definir, identificar, localizar. Era neste sentido que Einstein era religioso. 

Einstein não era religioso no sentido de acreditar em certos factos espácio-temporais como, por exemplo, “Deus entregou as tábuas da lei a Moisés no Monte Sinai” ou “Jesus ressuscitou ao terceiro dia”. Ser religioso, no sentido lato da palavra, é muito mais e muito menos do que isso. Há pessoas que acreditam nesses factos e que levam vidas tão miseráveis como qualquer materialista. Essas pessoas serão mais ou menos cristãs do que Einstein o foi? A que distância se encontrava Einstein de ser cristão?

Deixemos que seja Deus a julgar e abstenhamo-nos de tentar responder. Mas não nos abstenhamos de perguntar: “em que é que a Fé em Nosso Senhor Jesus Cristo muda a minha vida?” Ser religioso é ver a realidade de uma forma diferente, mas não é só isso ─ é deixar também que essa forma de ver a realidade transforme a nossa forma de a viver. O que também pode ser dito de outro modo: se a nossa forma de ver a realidade não traz automaticamente novidade à nossa vida, então é porque não estamos a ver a realidade de uma maneira realmente diferente, apenas julgamos que o fazemos.

Deus entregou as tábuas da lei a Moisés no Monte Sinai! Jesus ressuscitou ao terceiro dia! Estes factos não são só importantes; estes factos são decisivos. Mas não serão decisivos, nem sequer importantes, se eu ficar pela sua casca espácio-temporal e me esquecer do que eles procuram revelar acerca daquela realidade assombrosa da qual por vezes se tornam uma manifestação quase insignificante (dependendo do modo como são olhados e vividos), sobretudo se já passaram 2000 ou 3000 anos sobre a sua ocorrência e, pior, se as escassas dezenas de anos da minha própria vida, em vez de dedicadas a desenterrá-los das profundidades da História, ainda os vieram cobrir com as teias de aranha da rotina, com a qual o meu egoísmo tão sensatamente (do seu ponto de vista) me protege de desafios e sobressaltos.

Sobressaltos? Sim: a vida, a morte e a Ressurreição de Jesus Cristo devem ter sido para os seus contemporâneos como a explosão de uma supernova. E se, ao fim de vinte séculos, só restam dessa explosão as brasas quase extintas do rescaldo de um incêndio, há mesmo assim a possibilidade, soprando as brasas, de atear chamas que ameacem devorar todo o conforto em que a minha autocomplacência deixou que eu me instalasse.

8/11/2014
                                                        Fernando Henrique de Passos


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Deus vai até ao fundo...



«Deus não se detém, Deus não vai até a um certo ponto, Deus vai até ao fundo, ao limite»

«O verdadeiro pastor, o verdadeiro cristão (…) não tem medo. Vai para onde deve ir. Arrisca a sua vida, arrisca a sua fama, arrisca perder a sua comodidade, o seu estatuto» 

«É muito fácil condenar os outros, como faziam os escribas e fariseus, é muito fácil, mas não é cristão. Não é de filhos de Deus.»
Papa Francisco
(Excertos da Homilia de 6/11/2014)

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Ouvi a tua voz



No teu cabelo revolto como o vento,
vi temporais inclementes.
Fiquei como uma gaivota acossada
pela espuma e sem alimento.
Sustive a respiração. Apurei o ouvido.
Depois, ouvi a tua voz.
Nela soava uma divina ternura.
Ali, não estavam temporais inclementes.
O amor apagara-os, e com que poder…

5/11/2014

                          Teresa Ferrer Passos

"Teometria"

"Teometria", um poema inédito (11/2/2014)
de Fernando Henrique de Passos
Foto: Azenhas do Mar, Ericeira

O amor


O anel em torno do teu dedo
  

Como cintura em torno do destino
 
Como segredo do trono da ventura
 
Como cinzel esculpindo a traço fino
 
O abraço e o longo beijo infindo
 
Entre o calor dormente do desejo
 
E a ofegante calma da ternura
 
Entre o saber da alma que procura
 
E o fervor do ser que se alimenta
 
Das lentas madrugadas em que a luz do sol
 
Leva pela mão a noite escura
 
E a faz descansar da imensidão do medo
 
Num vasto mar de amor e aconchego

4/5/2014

                      Fernando Henrique de Passos 

sábado, 1 de novembro de 2014

Dia de Todos-os-Santos


EM MEMÓRIA DE TODOS OS SANTOS E MÁRTIRES


S. João Batista - pintura de El Greco


«Eu batizo em água, mas no meio de vós, encontra-se Alguém que não conheceis, Aquele que vem depois de mim e eu não sou digno de desatar a correia da sua sandália»
                                                        S. João Batista  (Jo 1, 26)


       «Deus não nos chamou para a impureza, mas para a santidade»
                           S. Paulo, Carta aos Telassonicenses (Tel 4, 7


«Oh! que mau caminho levava, Senhor! Bem me parece que ia sem caminho, se Vós não me voltásseis a pôr nele; pois vendo-Vos junto de mim, logo vi todos os bens»
Santa Teresa de Jesus, Livro da Vida


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Nascer de novo


No apagado segredo dos instantes,
frente ao mar, o amor elevou-se.
E foi um rochedo desde esse encontro.
Na espera e na vontade
nascemos de novo.
E o mundo não pôde ser mais o mesmo.

29 de Outubro de 2014 (21 anos depois)

                                           Teresa Ferrer Passos

O namoro




Palavra terna, eterna, meiga, doce
Que o mês de Outubro uma vez nos trouxe.
Fio de mel escorrendo de colmeia
Onde duas bocas se encontraram
E dois corpos, duas almas, dois destinos
Que desde então jamais se despegaram.

29/10/2014


Fernando Henrique de Passos

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A decomposição do arco-íris



(carta aberta a Richard Dawkins)

Impossível prender o movimento:
As borboletas mortas na vitrina
Não são já borboletas.
As asas secas e esticadas
Não se misturam já na luz, modificando-a,
Fazendo nascer mais novidade
De cada instante novo.
Muito ao contrário:
A rede quadricular das posições
Daqueles cadáveres sem sentido
Captura os núcleos de mudança
Como milhões de peixes sufocando
Brutalmente arrancados ao seio do fluir
Das doces águas,
E o contemplar da colecção
Arrasta a nossa alma por um longo corredor néon gelado
Num ziguezague em linha recta
Entre museus e hospitais.

Borboletas da minha adolescência:
Pudesse eu devolver-vos à luz das florestas,
Ao ar perpetuamente renovado
Que crescia entre as agulhas de pinheiro
As flores do cardo agreste
E os muitos milhares de ervas-sem-ter-nome,
Para que o pó das vossas asas fecundasse,
Mesmo que tarde,
Mesmo passados quarenta anos,
As águas do rio que já secou,
Cansado de esperar a vida eterna,
O rio onde meu pai me levava pela mão,
Era eu criança,
E em cujas margens me ensinava a procurar
Por entre o doce marulhar da vida
Aquelas gotas de total silêncio
Que encerram todas as razões do universo.

Borboletas da minha adolescência:
Conjuro-vos!
Rebentai os vidros das vitrinas!
Batei de novo as asas!
Libertai-vos das pinças e do éter!
Voai até ao sol!

Trazei de lá,
Se quiserdes assim manifestar-me
Que me concedeis vosso perdão,
A prova de que Newton estava errado
E de que a luz branca é muito mais
Que um espectro envergonhado
De se ver nu no pó na cinza e frigidez
Do laboratório onde aguarda
A sentença à pena capital.

28/10/2014

Fernando Henrique de Passos

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A lógica das coisas (carta aberta ao Professor Marcelo Rebelo de Sousa)

“A dívida subiu pela lógica das coisas”
(Professor Marcelo Rebelo de Sousa na TVI, em 26/10/2014)


Caro Professor Marcelo Rebelo de Sousa

Eu e o Professor sabemos que a “lógica das coisas” a que se refere é simplesmente o facto VARIAÇÃO DA DÍVIDA = DÉFICE, mas mais de metade dos portugueses que ontem o ouviram não sabem isso.

Dada a iliteracia matemática do nosso povo, propunha-lhe que explicássemos este facto aos cidadãos de uma forma mais corriqueira, que até um atrasado mental perceberá: QUEM GASTA MAIS DO QUE RECEBE TEM DE PEDIR EMPRESTADA A DIFERENÇA.

Há três anos que os políticos da oposição e alguns comentadores dizem (os primeiros) ou dão a entender (os segundos) que o Governo é o responsável pelo aumento permanente da dívida. Não me surpreende que a oposição o faça, porque há muitos políticos, em todos os partidos, que parecem julgar que mentir faz parte das suas atribuições profissionais. Surpreende-me, sim, que alguém como o Professor Marcelo Rebelo de Sousa colabore nesta farsa. (Sei muito bem que formalmente o Professor Marcelo Rebelo de Sousa não mentiu. Mas isso não muda nada.)

Com os melhores cumprimentos,

Fernando Passos


P.S. Não tenho qualquer simpatia especial por qualquer partido, do governo ou da oposição. Esta mensagem, como outras que lhe tenho enviado, é motivada apenas pela irritação que me provocam certos atropelos à lógica.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A moral da história



1 – Como caçar um macaco

Ponha um amendoim dentro de uma jaula que tenha as grades suficientemente apertadas para que a mão do macaco passe à justa entre elas. Quando o macaco vir o amendoim, irá meter a mão pelas grades para o agarrar, mas quando quiser tirar a mão outra vez de dentro da jaula, o punho fechado não conseguirá passar e o macaco ficará preso. Por estranho que pareça, o macaco não perceberá que se largar o amendoim ficará de novo livre.

2 – O Tempo e a Eternidade

Penso que quase todos nós imaginamos a vida eterna como qualquer coisa que vem depois da vida terrena, tal como o emprego vem depois dos estudos, ou como a reforma vem depois dos anos de trabalho. No entanto, esta forma de ver a eternidade coloca-a na categoria das coisas temporais, o que não faz muito sentido.

É verdade que a nossa mente está feita de tal modo que não conseguimos deixar de projectar a ideia de tempo em tudo aquilo que imaginamos ou consideramos mas, mesmo assim, auxiliados pela nossa capacidade de abstracção, devemos fazer um esforço para contrariar esta tendência, e podemos até contornar a dificuldade combatendo o tempo com as suas próprias armas.

Recorramos assim ao conceito temporal de simultaneidade, para dizer que a eternidade não é anterior nem posterior à existência terrena, antes lhe sendo simultânea. (Do mesmo modo, a jaula e a selva onde se pode ser livre e feliz são duas possibilidades que se oferecem ao macaco em simultâneo, a cada instante.)

Digamos então que tempo e eternidade são apenas duas maneiras diferentes de ver a mesma realidade, ou, talvez melhor, duas maneiras diferentes de a viver. Jesus Cristo veio explicar-nos isto e dar-nos o segredo que permite optar pela maneira certa de viver a realidade, embora a acção permanente do Espírito Santo, desde o princípio dos tempos, já tivesse levado gente sábia de diversas culturas a intuições parciais desta verdade.

A verdade é que é o nosso egoísmo que nos amarra ao tempo, o nosso egoísmo traduzido na obsessão em nos sentirmos bem, traduzido na multidão de medos e desejos mesquinhos pelos quais nos deixamos governar a cada instante. E as leis da moral, na sua origem, propunham-se apenas serenar este revolto mar interior que nos precipita no Tempo, que é o Tempo, mas que, uma vez serenado, se transforma no infinito mar da própria Eternidade.

3 – Moral da história

As leis morais não são o capricho de um Deus sádico, que se compraz em proibir-nos as coisas que nos dão prazer. Pelo contrário, as leis morais são simplesmente um “mapa do tesouro”, um caminho secreto para o Bem Supremo, uma pista que conduz do Tempo à Eternidade. Por isso, se alguém nos vier dizer para não nos preocuparmos mais com as velhas leis da moral, temos tanta razão para agradecer como o macaco a quem foram dizer que não largasse o amendoim.

22/10/2014


Fernando Henrique de Passos

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Edificar sobre rocha


Jesus edifica sobre a rocha
   «Fraternidade não é nem mediocridade, nem confraternização. Precisamos do eterno, ou então o que é a religião, o Santo? Não nos resta nada, nada de estável, está tudo em movimento. E, no entanto, temos necessidade de uma rocha»
                     E. Ionesco (in Antidotes), cit. por Joseph Ratzinger, O Caminho Pascal (1ª ed. em língua italiana no ano 2000), 1ª ed. (em língua portuguesa), 2006, p.163.

domingo, 19 de outubro de 2014

A caminho do perdão


Jesus em recolhimento
O mais importante nesta homilia (Missa da Beatificação de Paulo VI) do Papa Francisco é a ética que está subentendida no seu pensamento: a missão de evangelizar oferece a possibilidade do arrependimento e com ele a do perdão para o pecador se salvar e obter a grande recompensa. "Arrependei-vos", avisava S. João Batista. E Jesus: "Ide, fazei discípulos entre todos os povos". A salvação dos pecadores é a meta. A propósito, escreveu Joseph Ratzinger: "A dinâmica da missão não se pode traduzir na fórmula: Ide pelo mundo e tornai-vos também mundo e confirmai-o na sua profanidade! O contrário é que é verdadeiro. O «grão de mostarda» do Evangelho não se identifica com o mundo, mas destina-se a fazer fermentar todo o mundo" (in "O Caminho Pascal", 2000, pp. 162-163).

Teresa Ferrer Passos

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Rescaldo

Do grande incêndio de há quase dois mil anos
Que calcinou vontades egoístas
Libertando dos seus interiores sujos
Milhares de diamantes de pureza;
Do terramoto que fez ruir palácios
Mais cedo que o previsto
Salvando assim da morte os ocupantes;
Do vendaval escaldante
Que arrancou dos corpos suas vestes
E nus os lançou no longo caminho de regresso a casa;
Da cheia cujas águas cintilantes
Lavaram tanta chaga e podridão;
Do grande incêndio de há quase dois mil anos,
Do grande tumulto na ordem lógica das coisas,
Já só restam carvões quase apagados,
E por todo o lado despontam mais palácios,
E as roupagens cada vez mais ricas
Ocultam feridas tanto mais temíveis.

Senhor, porque não voltas?


16/10/2014

Fernando Henrique de Passos

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Pelos caminhos de S. João Batista




São João Batista
Maior entre os nascidos de mulher...... Intercedei por nós.
Voz que clama no deserto...... Rogai por nós.
Profeta do Altíssimo......Rogai por nós.
Profeta das Nações...... Rogai por nós.
Era mais que um Profeta...... Intercedei por nós.
Defensor da família e do matrimónio ...... Rogai por nós.
Santo Mártir da justiça e da verdade ...... Intercedei por nós.

(Excertos da Ladaínha de S. João Batista in "Olhar Deus com S. João", Paróquia de Santa Maria dos Anjos, Esposende, 2012)

sábado, 11 de outubro de 2014

Vim chamar ao arrependimento...


Das Alturas, nos nossos dias, Jesus olha para o Seu planeta.
E parece-Lhe um deserto.
A voz dos seus Discípulos estará a apagar-se?




«Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Não foram os justos, mas os pecadores, que eu vim chamar ao arrependimento»
Lc 5, 31-32


«Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, perdendo-se ou condenando-se a si mesmo? Porque se alguém se envergonhar de Mim e das Minhas palavras, dele se envergonhará o Filho do Homem, quando vier na Sua glória e na do Pai»

Lc 9, 25-26


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Na luz de outono


Suspensa no interior da catedral
Entre a cúpula e as lajes, a meia altura,
A ânsia de saber vibra e procura
Entre os raios de luz que caem do vitral
A rainha das pedras preciosas – porventura
Trazida por lapso outonal
Com as folhas vermelhas da estação madura.

(E as paredes de pedra transparente,
Olhando além da luz que o atravessa,
Dizem que o dia é todo uma promessa
E dizem mais que um dia assim não mente.)


10/10/2014

Fernando Henrique de Passos

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Nada teria a oferecer


«Oponho-me radicalmente à ideia  de que a democratização e a liberalização das estruturas, da disciplina e de certas áreas da doutrina moral da Igreja trarão consigo uma nova primavera do Cristianismo e afastarão a crise da Igreja. (...) Neste caso a Igreja dissolver-se-ia gradualmente no contacto interminável com a sociedade pós-moderna e nada teria a oferecer»

                           Tomás Halík, A Noite do Confessor, Paulinas, 2014, pp.202-203.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

No princípio de tudo


Madrugada muda estendendo-se no vale
União do céu com o calor da terra
Lucidez despontando no sonho sonolento da matéria
Hera trepando por colunas gregas
Entrada iluminada de palácio no centro de Florença
Rua discreta que conduz à razão de ser de todos nós


2/10/2014

Fernando Henrique de Passos

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Quinta-feira da espiga


Toma o tempo que quiseres.
Senta-te aqui e deixa-te arrastar
Pela contemplação desse mistério,
O grande torvelinho imóvel que te sorve,
Que te arranca as camadas do corpo e, uma a uma,
As recoloca depois na ordem certa.
Toma o tempo que quiseres, mas não perguntes
Que faço aqui no meio das papoilas?
Aguarda apenas que os sons do campanário
Deixem de ser exactos algarismos,
E que o óleo de novo se torne em aguarela
Na hora plena das doze badaladas
Fundidas num único sol-posto,
Prenúncio da derradeira madrugada,
Aquela que nunca terá fim.


29/9/2014

Fernando Henrique de Passos

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

A ocultação do tempo...



«(a personagem) Tempo 01 -  Um mar sem direcção sou eu e também sou aquele que tudo envolve e ninguém conhece, até mesmo nos domínios do Império da Vigilância Superior, em que há máquinas para desocultar as mais pequenas coisas ou os mais escondidos segredos que habitam o pensamento da gente humana! por isso, tudo o que sinto ou quero, parece desintegrar-se de mim, como se tudo o que me respeita fosse toda uma ocultação, como se nada me pertencesse, apesar de tudo ser meu...»
                  
                               Teresa Ferrer Passos, Planeta Joyce 8, Harmonia do Mundo, 2007, p. 24.

domingo, 21 de setembro de 2014

Contigo...

Enfermeira Natércia Ferrer

«... O teu corpo mudo. E afinal aprendi, estou a aprender a falar contigo sem tu me poderes dizer nada. Invento os sorrisos que não és capaz de esboçar, encontro as palavras que desejavas dizer-me, descubro a vontade que não expressas, mas te vai na alma. És um corpo iluminado pelo meu olhar sagaz, estonteado, revolto. (...)»

         Teresa Bernardino (ortónimo de Teresa Ferrer Passos) in Carta-Memória à Mãe, 2000 (por ocasião do 10º aniversário da morte de Natércia Paz Ferrer, minha mãe)

O feiticeiro transparente

O mago da praia sem idade
Vê a cada instante o universo inteiro
Conhece todas as cores da única verdade
E num perpétuo lusco-fusco de mosteiro
Vai entretecendo o tempo na eternidade

O bobo do parque dos narcisos
Procura espelhos nos olhos dos pardais
Ouve aplausos no chocalhar até dos próprios guizos
E a ânsia de ouvir cada vez mais
Torna-lhe os gestos febris e imprecisos

O drama todo do mundo
Vem do mágico e do pantomineiro
E do seu laço profundo:
Só pode agir o primeiro
Por meio do bailado do segundo


21/9/2014

Fernando Henrique de Passos

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Vazio de mãe


«Na casa há vozes de silêncio. Não se escutam. Não alertam. Não dão as mãos. Nem a boca para o suave beijar. As mãos, a boca, os lábios estão vazios de palavras ditas, reditas sem cessar. E a doçura é amarga sensação de tortura ou náusea ou dor sofrida, magoada. Só. Aqui. Entre móveis paredes objectos emudecidos pela tua ausência» (1 de Julho de 1990)

                Teresa Bernardino (ortónimo de Teresa Ferrer Passos) in Carta-Memória à Mãe, 2000 (por ocasião do 10º aniversário da morte de Natércia Paz Ferrer, minha mãe)

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Imagens da mente...


«(...) O químico do cérebro sente-se cada vez mais a viver dentro de um labirinto misterioso que ele acaba por multiplicar por centenas de outros labirintos. Ao espelhá-los numa contínua sobreposição, imagina séries de imagens deformadas que o estonteiam; entra, depois, num estado de letárgica existência que julga interminável.
Vê-se um espectro mórbido, um corpo esquelético de ninguém, um equívoco da vontade e do ser acabados na solidão. Vive. Sozinho na imobilidade. No excesso da perda, toda a energia se apagou num acaso inevitável.(...)»

Do romance inédito Um Cientista e uma Folha de Papel em Branco de Teresa Ferrer Passos

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

A luta pelo poder

Debate Costa-Seguro
A contenda-conflito de Costa contra o secretário-geral do Partido Socialista Seguro dá uma má imagem deste partido político. Dividido, o partido continua a dispersar forças. Pelas argumentações, os dois candidatos a 1º Ministro não se distinguem claramente, ainda que Costa se revele mais prudente, foi infeliz em expressões como "fazer uma fisioterapia" ou "uma agenda para a década".... Costa não se revela melhor ou superior a Seguro, antes pelo contrário... É claro que Costa não é novo nas lides de anteriores governos do PS, mas se sair vencedor nas primárias de 28 de Setembro próximo, não será difícil a Passos Coelho dar-lhe o pontapé de saída daqui a um ano, como já o fez com o experiente e engenhoso José Sócrates, há 3 anos.

11 de Setembro de 2014
Teresa Ferrer Passos

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Numa sociedade que repudia a diferença...

Ana Augusta Plácido com Camilo Castelo Branco
e o primeiro filho, Manuel
«(...) sensível ao desprezo e ao desdém da sociedade, Ana agoniza a dor sem se queixar a Camilo. Ele dá pouca importância às suas mágoas, alcandora-se numa indiferença de palmeira desenraizada. As feridas que já vão atingindo também o corpo da amante, parecem não o tocar. O órgão que mais se ressente é o coração. A sociedade não lhe dá tréguas. E Ana é incapaz de ter o autodomínio necessário para se preservar dos golpes (...)»

     Teresa Ferrer Passos, O Segredo de Ana Plácido, Edições Gazeta de Poesia, Lisboa, 1995, 1ª edição, p. 233 (Romance publicado por ocasião do 1º Centenário da morte de Ana Augusta Plácido).