EM BUSCA DE UMA NOVA
CIVILIZAÇÃO ATLÂNTICA ? *
Nos últimos anos do epílogo do segundo milénio, a
civilização Ocidental confronta-se com um tempo de nebulosos contornos mentais,
sociais e económicos. Contudo, os povos das Culturas que a delineiam, continuam
a viver questões de ordem rácica, problemas religiosos e carências de natureza
material que, acumulando-se, os agridem diariamente por catadupas de notícias
veiculadas pela televisão, pela rádio e
pelos jornais que o cidadão escuta ou lê, sempre na ânsia de descobrir um
sentido novo, uma desocultação da verdade, uma qualquer salvação do lamaçal em
que se sente, sem apoios. Espera-se sempre uma assunção de algo (ou de alguém?)
vindo de um lugar inesperado e indicando um rumo neste mundo ávido de futuro.
Esta constante e contínua busca de informação-alerta ou
informação-espera se aproxima, também aliena, se cria uma tensão, também
pacifica. Porque ela é um sintoma flagrante de solidão, sem anular outro não
menos determinante, o sentimento de inquietação, de intranquilidade, senão
mesmo de desespero, perante uma realidade incontrolável que tolhe, que abafa a
vontade e limita a liberdade das consciências.
Esta ansiedade da psique
é o mais anunciador e evidente sinal da decadência de uma civilização que morre
devagar, porque a ideia de imortalidade se foi apagando lentamente dos seus
horizontes. Mas num desafio incontido, desde os tempos da Idade do Ferro, a
esperança de ter, nunca lhe anulou a
esperança de ser na dimensão mais
funda da vida.
A civilização Ocidental está perante as ambiguidades de
uma economia que trouxe a abundância, mas não evitou o desperdício e, ao
liberalizar ou socializar, não criou um mundo de solidariedade e diferença, de
compromissos mútuos e de liberdade. As incertezas das teorias filosóficas e
científicas provocaram, e continuam a provocar, a fragmentação das suas
estruturas ideológicas seculares. Assim, numa labiríntica teia de direcções mal
definidas, duvidosas e incertas, o pensamento Ocidental dispersa-se e perde-se
das suas raízes profundas.
Sem construções mentais com a matriz da eternidade, com o
sentido do absoluto, com a força da unidade entre o material e o espiritual, o
declínio desta civilização enfrenta tempos de saudade de um passado impossível
e de um futuro que demora tanto como se nunca pudesse chegar. E as culturas
confrontam-se com um ambiente de estagnação ideológica. Neste vazio anulante,
tende-se a recorrer obstinadamente a comportamentos ou atitudes que, sendo
caducos ou com o estigma da corrupção, possibilitam a sua frágil e insegura
respiração.
A vida está assegurada pela sobrevivência. E mesmo esta,
vislumbra ao longe os competidores do futuro: os computadores que já resolvem
problemas, problemas só próprios de seres pensantes, que irão sentir, que
depois criarão. Nesta hora em que as perversões não podem ser excluídas, sob
pena de condenação generalizada em praça pública, em que a liberdade se tornou
sinónimo de pura permissividade ou em que a ética é ciosamente guardada como se
de um secreto jardim de bafientas personagens se tratasse, em que a
parcialidade e o egoísmo dominam todos os esquemas sociais, em que o sagrado,
invisível, é recusado, como se fosse uma assunção demoníaca ou de perdição,
nesta “hora zero” da vida é preciso semear a Esperança: num “Encoberto”, num
“Navio-Fantasma”, num “Santo Graal” da generosidade, ou numa “Saudade”
qualquer.
É Hora de Prima,
como escreveu Dalila Pereira da Costa «porque alguma coisa se poderá ver nesta
opacidade do Ocidente?»[1]. Uma névoa espessa envolve, de facto, a civilização
Atlântica ou do Ocidente. A «Nova
Atlântida», na expressão da autora de livro homónimo. Numa visão, quase
sempre com cariz profético, Dalila Pereira da Costa anuncia um Portugal com a
saudade da origem e, em simultâneo, com a saudade do futuro.
Na esteira de Fernando Pessoa e de Spengler, desoculta o
conceito de nação com um corpo físico e uma mente, equiparáveis às dos
indivíduos. Estes nascem, desenvolvem-se, envelhecem e morrem. As nações têm
uma vida idêntica, porque passam por essas mesmas fases, ao longo da sua
existência. Cada nação é, antes de tudo, um indivíduo colectivo que possui uma
vida psíquica, em que tempos de ocultação, meditação e silêncio, alternam com
outros de abertura, palavra e acto. Tudo se processa numa sucessão cíclica
uniforme. Sem saltos bruscos ou rupturas súbitas, tudo evolui numa fluidez
constante.
Em 1918, ao publicar a obra A Decadência do Ocidente, Spengler considerou as culturas como
«seres vivos de ordem superior» e com uma alma própria que só pode morrer quando
«realizou a soma das suas possibilidades». Neste modo de perspectivação
histórica das civilizações, a alma é uma realidade cultural que, quando morre,
está a criar as condições para fazer emergir uma nova civilização. Em
consequência, novas culturas estão na forja, com a força do seu destino
inexorável e com o carisma de um absoluto
totalizante.
A alma da cultura ocidental é a sua maior riqueza. É ela
que na sua dimensão fáustica, ou seja, na sua essência espiritual, se contrapõe
à cultura mediterrânica da Antiguidade Oriental e Greco-Latina. Os edifícios
artístico-religiosos, criações da cultura ocidental, apresentam-nas, como forma
maior de expressão (desde a cultura megalítica). O seu material específico era
a pedra. A pedra que, no Ocidente, tem sido o símbolo do intemporal, da
eternidade e, assim, se transformará no
grande mito da civilização europeia.
Alicerçada na crença distante e próxima da
invisibilidade, e a entrever-se nas malhas de um sonho saudoso de invisível, a
civilização Atlântica é a redentora dos grandes símbolos, é a formuladora da
saudade ideal dos tempos primordiais, e dos tempos do fim. Acentuando o
carácter inovador das culturas ocidentais, é, precisamente, Spengler que
defende serem os povos «unidades espirituais», mais do que unidades
linguísticas ou políticas.
Ao publicar, em 1935, o livro Mensagem, Fernando Pessoa não pôde deixar de partir deste
pressuposto fundamental. Mas, projectando-o à dimensão universalista, adapta-o
à mística sebastianista do Portugal Atlântico. Foi com «alma atlântica», que
Pessoa gizou o «Mar Português», «A Última Nau», «O Encoberto», apesar de
envoltos em desesperante «Nevoeiro».
E no perfil dos litorais do Ocidente da Ibéria, desenha
Portugal a olhar um Atlântico Oculto, tenebroso ou a irradiar a luz do encontro
aberto ou enigmático, saudoso e quimérico: «Nem rei nem lei, nem paz nem
guerra, / Define com perfil e ser / Este fulgor baço da terra / Que é Portugal
(...)»...
Portugal, essa terra a perder de vista frente ao
Atlântico e a mirar ainda as ilhas dispersas e distantes. O seu «corpo»,
mutilado pela perda dessa terra imersa a entrar pelo oceano, a quem ofereceu o
nome ou a quem ele baptizou, soberano e audaz, como se o mar fosse todo ele,
fosse a eternidade, a abrir-se nas ondas de um sal redentor e a desfazer-se nas
lágrimas da saudade, que é «Portugal a entristecer», por ainda não poder
cumprir-se («falta cumprir-se Portugal», escreve Pessoa), e cumprindo a sua
vocação missionária e aventurosa, conforme o espírito recebido dos distantes,
mas nunca esquecidos, povos da cultura dolménica.
Esses povos das margens atlânticas, desde as ilhas do
Ocidente Norte da Europa, onde os Celtas estabeleceram os seus santuários, até
à Ibéria ou às terras da Atlântida. Essa grande ilha que, no século V a.C.,
Platão situaria para o Ocidente das Colunas de Hércules ou Estreito de
Gibraltar.
Essa grande ilha ou continente atlântico, em que os reis
bebiam o vinho em taças de ouro, símbolo solar da imortalidade, e onde a
principal cidade era identificada por círculos concêntricos (cromeleques
circulares). Nessa grande ilha, em que os povos desenvolviam uma actividade
mercantil-marítima, até aos confins dos mares do Norte da Europa e do Sul, a
bordejar os contornos Mediterrânicos.
Em Portugal, Razão
e Mistério, António Quadros identificará esses navegadores ou missionários
da crença na imortalidade da civilização dolménica (que abrangia todo o
Ocidente europeu até aos mares do Norte) com os Atlantes, esses habitantes da
magnífica Ilha ou Grande Continente, a Atlântida, que teria parcialmente
sucumbido por acção de terramotos, da violência das águas ou de cataclismos
vulcânicos[2].
O mar sem fim, o Atlântico, constitui, no seu elemento
marítimo, a água, a Alma da civilização megalítica, em que a primeira religião
solar, fundada na ideia da imortalidade, se constitui e difunde da Bretanha à
Irlanda, até aos Mares do Atlântico Norte. Descendentes do povo dolménico ou do
sudoeste ibérico, os Atlantes, não são mais do que os enigmáticos lusitanos
que, ao receberem a influência dos Celtas, povo detentor da mais avançada
metalurgia do ferro consolidaram, no contacto com estes, a sua crença ancestral
na vida, para além da morte física. Como nota António Quadros, também os
Celtas, oriundos da Europa Central, partilhavam desta crença. E divulgaram-na
até às zonas litorais e às ilhas do Norte.
A espiritualidade expressa nos megalitos, nos seus
desenhos espirais e circulares, na serpente eterna e nas águas, aliaram-se ao
aventureirismo, à missão e ao ocultismo do Ocidente Atlântico. Sobretudo
presentes nos povos da orla marítima galaico-portuguesa, foram comuns aos
romanos, aos infiéis muçulmanos e aos Cristãos da Reconquista.
A verdade é que, confrontando a religiosidade
megalítico-céltica do Atlântico com a religiosidade judaico-cristã, há uma
semelhança e uma complementaridade, se não mesmo um reforço profundo. Em tal
constatação, não se inscreverá o Culto do Espírito Santo, instaurado em
Portugal, pelo rei D. Dinis, e que obteve uma larga adesão popular? A linha
Joaquimita da Ordem Franciscana e o estabelecimento da Ordem dos Templários, em
Portugal, não terão proporcionado uma viva propagação desses princípios comuns?
E não terão sido eles os propugnadores, em Quatrocentos, da Expansão Marítima
além-Atlântico para o Sul e para o Ocidente?
Esta dispersão dos Portugueses pelas terras remotas e
perigosas do planeta desconhecido, não lembrará toda a diáspora levada a cabo
pelos povos dolménicos do Megalitismo? Nos Descobrimentos dos portugueses e dos
espanhóis dos séculos XV e XVI, não se desenhava a esperança num futuro
promissor e, ao mesmo tempo, saudoso, da Atlântida perdida? Não se poderá
vislumbrar mesmo, uma busca dessa Atlântida mítica e esfumando-se nas vagas
alterosas do oceano, sem fim?
Não haverá nessa Gesta das Navegações, ao longo do
imperial Atlântico, as sombras diáfanas dessa abundância perdida nas águas
revoltas e tormentosas, perdida ou
lançada para além... para além do Bojador...?
Como escreveu Francisco Cunha Leão, com os Descobrimentos
«o interesse nacional universalizou-se e confundiu-se com o da Civilização»[3]. Depois de tanta espera, o desconhecido a descobrir-se e
a abrirem-se por intermédio desse povo luso, a encontrar a novidade, a
desocultar o tempo inesperado...da Profecia ou do Desejo.
E, é nestes «tempos novos esperando», que vemos a
sibilina Dalila Pereira da Costa: uma Nova Civilização, uma Nova Atlântida, «só
a paz celeste espalhando: / a que vem, que no horizonte desponta»[4]. Palavras extraídas do poema titulado «A Nova História».
Nova História que é também a Nova Descoberta ou a Nova Saudade, de um tempo
difuso e indefinido, que cresce frente às águas oceânicas, frente aos navios
que as afrontam e não logram desvendar o que está para além das ondas e dos
ecos.
Desvendar com as profecias místicas, desvendar com a
gnose da experiência sapiencial do antes, a indicar rumos ainda que encobertos
pela névoa marítima do futuro, sempre a ser uma «Força do Mundo». É esta «Força
do Mundo» que Dalila Pereira da Costa vivencia e, ao mesmo tempo, procura,
entre os sentidos ocultos em todos os sentidos, quer sejam individuais, quer
sejam colectivos, como o das nações.
A nau e o graal, como a cruz e a pomba ou a serpente e o
sol, são alguns dos símbolos de um trânsito circular de navegações envoltas em
sonho e saudade, em difusa esperança num «salvador». Um salvador encoberto
talvez, mas vivo como o Espírito Santo, a atravessar o último estádio da
humanidade expectante, dolorosa, mas a vigiar como Cristo ensinou.
Em A Nova Atlântida,
Dalila Pereira da Costa escolhe Fernando Pessoa como o representante supremo
desse espírito que conduz à redenção da pátria, a qual terá de edificar o
Quinto Império do Espírito Santo, conforme o prenunciaram o Bandarra de
Trancoso e o Padre António Vieira, no século XVII, na “hora” em que a Pátria do
futuro estremecia, perante a prolongada dominação estrangeira. A Restauração da
independência nacional, em 1640, era sobretudo, a chegada do “Desejado” para
realizar Portugal. Porque, como diz Dalila Pereira da Costa «é o sagrado que
justifica o profano»[5]
A terra portuguesa, terra dos povos dolménicos, de celtas
e lusitanos, onde se praticaram os grandes cultos solares da imortalidade, é,
para Dalila, uma terra-mãe, qual deusa da fertilidade ou da Vida. A terra
portuguesa é, igualmente, a pátria dos Atlantes que terão, nos tempos
vindouros, de fazer ressurgir das águas, a sua Atlântida magnífica e perdida
nas trevas do oceano ou nas catacumbas do pecado, e à espera do regresso à
vida. É, neste contexto, que Portugal alcançará o seu sentido pleno: o sentido
universalista que o messianismo já anunciava.
A Mensagem de
Pessoa, publicada em 1935, proclama esse sentido de Portugal, enunciado já com
a revista Orpheu (1917), a que estava
ligada a esperança numa Renascença Nova.
A Orpheu, publicada simultaneamente
em Portugal e no Brasil, tinha em vista criar essa Comunidade de Língua
Portuguesa que o Atlântico (ou o espírito da grande Atlântida?) tendia a unir,
não a separar.
Unir, para ser possível a Portugal transcender as suas
fronteiras terrestres, cortadas
abruptamente pelo mar, e estabelecer os fundamentos da futura civilização
Atlântica. Já não assente na Europa trans-pirenaica, mas em Portugal, ou seja,
no Mundo de Língua Portuguesa. No poema «Ultimatum», Pessoa explana a sua
crença absoluta naquele “Super-Homem” (o “Super-Camões” que descobre?)
proclamado por Nietzsche, mas que falaria a Língua Portuguesa.
E esse “super-homem” era não só «o mais forte», mas «o
mais completo», não era só «o mais duro», mas «o mais complexo», não era só «o
mais livre», mas «o mais harmónico»[6]. Então, proclama, com entusiasmo, o “heterónimo” Álvaro
de Campos: «(...) na barra do Tejo, de costas para a Europa, (...) fitando o
Atlântico e saudando abstractamente o infinito»[7]. É a “hora” da «vinda de uma Humanidade matemática e
perfeita!»[8].
E, em versos da Ode
Marítima, canta a nova civilização a «largar por aí fora, pelas ondas, pelo
perigo, pelo mar / Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância abstracta». Ir
mais além com a aventura dos navegantes-missionários celtas de que descendemos,
para construir o Novo Mundo, já não do Corpo, mas do Espírito, que é a Língua
(para realizar a promessa feita à Humanidade).
«Ah, seja como for, partir», entoa o poeta mirando o
Atlântico da esperança que é Portugal, a prolongar-se para além das praias e
dos arvoredos. Ultimatum, a palavra
última, a última palavra a romper o silêncio e o apagamento, a palavra-final de
algo que é preciso quebrar, para se lhe dar nova forma, novo rumo, novo
destino.
A palavra última de Pessoa está hoje, viva e actuante ou
acto, em pensadores, como Dalila Pereira da Costa: O Esoterismo de Fernando Pessoa, obra publicada em 1978 e a
conferência Orpheu, Portugal e o Homem do
Futuro, que foi dada à estampa, no mesmo ano, são alguns exemplos de sua
adesão ao pensamento expresso nos escritos de Fernando Pessoa como, por
exemplo, o poema Ode Marítima, que a
autora de Hora de Prima entende ser
um dos mais significativos. Fernando Pessoa «sustentará em si com o peso desta
nova missão colectiva da pátria»[9], acentua Dalila. Depois, com «alma atlântica», «tudo se
fará, a partir das margens marítimas de Portugal, virando as costas à Europa»[10].
«Virar as costas à Europa» e criar uma Nova civilização
Atlântica! O grande projecto está aí, e o grande enigma também. Um grande mito
eleva-se no espaço, e fortifica-se na terra dos “patres”, mortos e a vivificando-se na memória de um hoje, a viajar para o
futuro, “at aeternitatem”? Ensina-nos Dalila Pereira da Costa: «a Mensagem
surge como mito e rito que conta a criação duma pátria, tal como outra
cosmogonia»[11]. E ainda ajuíza, sibilinamente: «A vinda do Encoberto
marcará o fim da História»[12].
Na sua obra A Nova
Atlântida publicada, em 1977, Dalila sublinhava já a importância de
Fernando Pessoa na sua teorética, no início do capítulo «A alma atlântica».
Aqui, a autora detém-se a averiguar o sentido primitivo da comunidade
atlântica. Com a argúcia dos profetas, Dalila Pereira da Costa, entende que foi
a união dos povos do Atlântico Norte com os ibéricos, designadamente com os
celtas de Entre Douro e Minho, que viabilizou a partilha da passagem do
Antárctico, no tempo de D. Afonso V de Portugal
e de Cristiano I da Dinamarca, ou ainda que as cruzadas, com origem na
cidade do Porto, chegassem às quiméricas Ilhas das Sete Cidades dispersas
algures no Atlântico.
A filósofa do simbolismo português infere, igualmente,
que o tratado de Tordesilhas celebrado, em 1492, entre Portugal e Castela, ao
dividir o mundo pelos dois países ibéricos, é revelador, na sua expressão místico-espiritual,
de algo que se relaciona, ou que fundamenta, a verdadeira missão de Portugal.
Lembrando «o sentido sagrado da terra»[13], Dalila Pereira da Costa considera que a Península
Ibérica, esse bastião do sagrado, conterá, depois do Tratado de Tordesilhas, o
pré-anúncio da «futura civilização dos povos do Atlântico Sul»[14].
E a autora de Místicos
Portugueses do século XVI (Lello & Irmão, Porto, 1986) vê o Encoberto como
símbolo da dimensão futura do Mundo, que o Português criou. A chegada do D.
Sebastião do “Espírito”, coincidirá com «o nascimento de uma pátria, como nova
criação, para o homem e para o mundo»[15]. Seria, como preconizava Teixeira de Pascoaes, um
«Regresso ao Paraíso» no futuro.
O Atlântico Norte, o da espiritualidade tradicional
céltica (irlandesa e britânica), une-se ao Atlântico Sul, na zona de cruzamento
das suas águas, que é, aproximadamente, correspondente à orla marítima das
terras da Serpente e (ou) de Santa Maria: do círculo e do oceano.
Símbolos de eternidade e da imagem «mátria», esse mito
«pátrio» por excelência, como escreve Dalila em A Nau e o Graal. Estes, os dois símbolos maiores do espírito
lusíada, a ser «ilha longínqua e velada», em que «tudo será procura da Vida, na
sua existência verdadeira, fora do tempo»[16] e a ser «a terra procurada» ou «essa ilha prometida e
procurada nas águas do oceano»[17].
Se como escreveu Gordon Childe, «as superstições
populares de Portugal, da Bretanha e da Irlanda são reminiscências da tradição
megalítica»[18], não duvidamos que a «nova civilização atlântica» tenha
de ser edificada na «Ocidental Praia Lusitana» cuja «aculturação celtibérica»
trouxe «o culto do fogo» na cultura do Ferro (e da forja), que possuiam e
propagaram na terra de «Sephes» ou Frons
Ophiusae (Frente das Serpentes), como titulou o romano Avieno o seu poema
marítimo.
Com a gesta dos Descobrimentos Atlânticos, a missão dos
Atlantes prolongar-se-á no mundo que o português criou, ou seja, no
universalismo planetário da Expansão marítima Quatrocentista. Uma Nova Idade
era alcançada pela pequena nação-nau, aquela que Sampaio Bruno traçou nas
últimas páginas de O Encoberto
(1904), como a Pátria da Liberdade, da Justiça e da Paz e que Teixeira de
Pascoaes definiu em A Arte de Ser
Português (1915). Que Fernando Pessoa tentou eternizar na sua teoria
política (exposta numa série de escritos fragmentários) sobre o Império
Espiritual da Nova Civilização de Língua Portuguesa. E ergueu a esperança na
revista Orpheu (1917), em que
Portugal e o Brasil constituem um único projecto de Futuro. Agora, a
civilização do Atlântico já não é europeia, é universal.
O Império rasgará os mares, de novo, e como na gesta
descobridora o Atlântico unirá, mas diferentemente dela, não mais irá separar.
O mundo da Novidade crescerá sob as luzes da Ciência (com destaque para a
Matemática, gnose suprema), escreveria Fernando Pessoa nas últimas linhas do
poema «Ultimatum». E qual Pessoa, Dalila Pereira da Costa escreve, em cada
livro que publica, um manifesto em defesa do Atlantismo, Saudade e Alma da
Lusitania.
A propósito, na obra
Antropologia Luso-Atlântica, Almeida Langhans diz-nos que a mais universal
de todas as civilizações, é a civilização atlântica. E vaticina: «A grande
civilização oceânica que se avizinha é uma civilização universalista e espacial
feita à medida do cosmos»[19]. Logo a seguir, acrescenta: «O grupo altamente
miscigenado do luso-atlântico difundido é já um grupo de raça cósmica que
espera a sua vez espacial»[20].
O luso-atlântico ou a raça cósmica está no espaço
peninsular ibérico à espera de criar as condições para a sua plena realização.
Já não dentro das fronteiras da estreita faixa ocidental batida pelo Atlântico,
mas pelo Atlântico dentro, unindo o Norte e o Sul, o Ocidente e o Oriente. É
precisamente nesta raça cósmica que fala Dalila Pereira da Costa quando
escreve, a propósito do Poeta maior da Orpheu:
«como ficou memorado no Ultimatum
veremos que esse acto é um acto de suprema iniciação»[21]. Este acto implicará, no futuro, a edificação da
Comunidade Atlântica, em que a «Tradição-Língua» Portuguesa terá o Império.
Se assim não for, a civilização Ocidental decaída, não se
poderá erguer com uma cultura verdadeiramente viva. É que a Europa
trans-pirenaica, ao privilegiar o “Reino da Matéria” sobre o “Reino do
Espírito”, não desenvolveu, em si, na actualidade, a dimensão da imortalidade.
Essa imortalidade que, desde os tempo do megalitismo
dolménico, foi a fé maior dos lusitanos, herdeiros do espírito dos Atlantes da
Ibéria. A civilização do futuro terá de se localizar, no seu âmago, ou melhor
dizendo, no cruzamento das margens atlânticas dessas vastas regiões que
compõem, e dão corpo físico, aos países que comungam da Língua Portuguesa.
A Língua Portuguesa será a Pátria Universal de um Futuro
(o Futuro Prometido pelo Império do Espírito Santo), a desenhar-se já nas
caravelas, nas cruzes de Cristo, no Santo Graal. Sob o espesso manto do
nevoeiro, Dalila Pereira da Costa exalta o mar, esse pater a envolver-se no húmus mátrio, e a anunciar a «realidade
cosmogónica da alma portuguesa»[22].
Como nos tem ensinado a sibila-Dalila, que o verso
tornaria rima, os portugueses «esperam junto à porta do Douro, envolvidos nas
velhas sagas marítimas e no doce canto dos pássaros proféticos»[23].
Se assim puder vir a ser, exultemos na espera do Império
do Espírito, porque os deuses nos honraram ao fazê-lo sob a égide da Língua
Portuguesa.
Teresa Ferrer Passos
* Conferência integrada no Colóquio subordinado ao tema «Dalila Pereira da
Costa e as Raízes Matriciais da Pátria», proferida no Ateneu Comercial do
Porto, em 17 de Maio de 1996; in Dalila
Pereira da Costa e as Raízes Matriciais da Pátria - Colóquio, Fundação
Lusíada, 1998, pp.129-137.
[1]
Ob.Cit., Lisboa, Fundação Lusíada,
1993, p.72.
[2]
Platão, Timeu in Ob. Cit., p.119.
[5]
A Nova Atlântida, Porto, Lello e
Irmão, 1977, p. 238.
[6]
«Ultimatum», in Obras Escolhidas, Ed.Verbo, 1985, vol. 4, p.193.
[7]
Ibidem.
[8]
Ibidem.
[9]
Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro,
Porto,1978, p.9.
[10]
Ibidem, p. 15.
[11]
O Esoterismo de Fernando Pessoa,
Porto, Lello e Irmão, 1978, p.162.
[12]
Ibidem, p.191.
[13]
Ibidem, p.16.
[14]
Ibidem, p.16.
[15]
Ibidem, p.77.
[16]
A Nau e o Graal, Porto, Lello e
Irmão, Porto, 1978, pp.63-64.
[17]
Ibidem, p.62.
[19]
Antropologia Luso-Atlântica, Lisboa,
1970, p.253.
[20]
Ibidem, p.257.
[21]
Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro,
Porto, 1978, p.15.
[22]
A Nova Atlântida, Porto, Lello e
Irmão, 1977, p.234.
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