Em busca de...


EM BUSCA DE UMA NOVA CIVILIZAÇÃO ATLÂNTICA ? *

Nos últimos anos do epílogo do segundo milénio, a civilização Ocidental confronta-se com um tempo de nebulosos contornos mentais, sociais e económicos. Contudo, os povos das Culturas que a delineiam, continuam a viver questões de ordem rácica, problemas religiosos e carências de natureza material que, acumulando-se, os agridem diariamente por catadupas de notícias veiculadas pela televisão, pela  rádio e pelos jornais que o cidadão escuta ou lê, sempre na ânsia de descobrir um sentido novo, uma desocultação da verdade, uma qualquer salvação do lamaçal em que se sente, sem apoios. Espera-se sempre uma assunção de algo (ou de alguém?) vindo de um lugar inesperado e indicando um rumo neste mundo ávido de futuro.

Esta constante e contínua busca de informação-alerta ou informação-espera se aproxima, também aliena, se cria uma tensão, também pacifica. Porque ela é um sintoma flagrante de solidão, sem anular outro não menos determinante, o sentimento de inquietação, de intranquilidade, senão mesmo de desespero, perante uma realidade incontrolável que tolhe, que abafa a vontade e limita a liberdade das consciências.

Esta ansiedade da psique é o mais anunciador e evidente sinal da decadência de uma civilização que morre devagar, porque a ideia de imortalidade se foi apagando lentamente dos seus horizontes. Mas num desafio incontido, desde os tempos da Idade do Ferro, a esperança de ter, nunca lhe anulou a esperança de ser na dimensão mais funda da vida.

A civilização Ocidental está perante as ambiguidades de uma economia que trouxe a abundância, mas não evitou o desperdício e, ao liberalizar ou socializar, não criou um mundo de solidariedade e diferença, de compromissos mútuos e de liberdade. As incertezas das teorias filosóficas e científicas provocaram, e continuam a provocar, a fragmentação das suas estruturas ideológicas seculares. Assim, numa labiríntica teia de direcções mal definidas, duvidosas e incertas, o pensamento Ocidental dispersa-se e perde-se das suas raízes profundas.

Sem construções mentais com a matriz da eternidade, com o sentido do absoluto, com a força da unidade entre o material e o espiritual, o declínio desta civilização enfrenta tempos de saudade de um passado impossível e de um futuro que demora tanto como se nunca pudesse chegar. E as culturas confrontam-se com um ambiente de estagnação ideológica. Neste vazio anulante, tende-se a recorrer obstinadamente a comportamentos ou atitudes que, sendo caducos ou com o estigma da corrupção, possibilitam a sua frágil e insegura respiração.

A vida está assegurada pela sobrevivência. E mesmo esta, vislumbra ao longe os competidores do futuro: os computadores que já resolvem problemas, problemas só próprios de seres pensantes, que irão sentir, que depois criarão. Nesta hora em que as perversões não podem ser excluídas, sob pena de condenação generalizada em praça pública, em que a liberdade se tornou sinónimo de pura permissividade ou em que a ética é ciosamente guardada como se de um secreto jardim de bafientas personagens se tratasse, em que a parcialidade e o egoísmo dominam todos os esquemas sociais, em que o sagrado, invisível, é recusado, como se fosse uma assunção demoníaca ou de perdição, nesta “hora zero” da vida é preciso semear a Esperança: num “Encoberto”, num “Navio-Fantasma”, num “Santo Graal” da generosidade, ou numa “Saudade” qualquer.

É Hora de Prima, como escreveu Dalila Pereira da Costa «porque alguma coisa se poderá ver nesta opacidade do Ocidente?»[1]. Uma névoa espessa envolve, de facto, a civilização Atlântica ou do Ocidente. A «Nova Atlântida», na expressão da autora de livro homónimo. Numa visão, quase sempre com cariz profético, Dalila Pereira da Costa anuncia um Portugal com a saudade da origem e, em simultâneo, com a saudade do futuro.

Na esteira de Fernando Pessoa e de Spengler, desoculta o conceito de nação com um corpo físico e uma mente, equiparáveis às dos indivíduos. Estes nascem, desenvolvem-se, envelhecem e morrem. As nações têm uma vida idêntica, porque passam por essas mesmas fases, ao longo da sua existência. Cada nação é, antes de tudo, um indivíduo colectivo que possui uma vida psíquica, em que tempos de ocultação, meditação e silêncio, alternam com outros de abertura, palavra e acto. Tudo se processa numa sucessão cíclica uniforme. Sem saltos bruscos ou rupturas súbitas, tudo evolui numa fluidez constante.

Em 1918, ao publicar a obra A Decadência do Ocidente, Spengler considerou as culturas como «seres vivos de ordem superior» e com uma alma própria que só pode morrer quando «realizou a soma das suas possibilidades». Neste modo de perspectivação histórica das civilizações, a alma é uma realidade cultural que, quando morre, está a criar as condições para fazer emergir uma nova civilização. Em consequência, novas culturas estão na forja, com a força do seu destino inexorável e com o carisma de um absoluto  totalizante.

A alma da cultura ocidental é a sua maior riqueza. É ela que na sua dimensão fáustica, ou seja, na sua essência espiritual, se contrapõe à cultura mediterrânica da Antiguidade Oriental e Greco-Latina. Os edifícios artístico-religiosos, criações da cultura ocidental, apresentam-nas, como forma maior de expressão (desde a cultura megalítica). O seu material específico era a pedra. A pedra que, no Ocidente, tem sido o símbolo do intemporal, da eternidade e, assim,  se transformará no grande mito da civilização europeia.
   
Alicerçada na crença distante e próxima da invisibilidade, e a entrever-se nas malhas de um sonho saudoso de invisível, a civilização Atlântica é a redentora dos grandes símbolos, é a formuladora da saudade ideal dos tempos primordiais, e dos tempos do fim. Acentuando o carácter inovador das culturas ocidentais, é, precisamente, Spengler que defende serem os povos «unidades espirituais», mais do que unidades linguísticas ou políticas.

Ao publicar, em 1935, o livro Mensagem, Fernando Pessoa não pôde deixar de partir deste pressuposto fundamental. Mas, projectando-o à dimensão universalista, adapta-o à mística sebastianista do Portugal Atlântico. Foi com «alma atlântica», que Pessoa gizou o «Mar Português», «A Última Nau», «O Encoberto», apesar de envoltos em desesperante «Nevoeiro».

E no perfil dos litorais do Ocidente da Ibéria, desenha Portugal a olhar um Atlântico Oculto, tenebroso ou a irradiar a luz do encontro aberto ou enigmático, saudoso e quimérico: «Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, / Define com perfil e ser / Este fulgor baço da terra / Que é Portugal (...)»...

Portugal, essa terra a perder de vista frente ao Atlântico e a mirar ainda as ilhas dispersas e distantes. O seu «corpo», mutilado pela perda dessa terra imersa a entrar pelo oceano, a quem ofereceu o nome ou a quem ele baptizou, soberano e audaz, como se o mar fosse todo ele, fosse a eternidade, a abrir-se nas ondas de um sal redentor e a desfazer-se nas lágrimas da saudade, que é «Portugal a entristecer», por ainda não poder cumprir-se («falta cumprir-se Portugal», escreve Pessoa), e cumprindo a sua vocação missionária e aventurosa, conforme o espírito recebido dos distantes, mas nunca esquecidos, povos da cultura dolménica.

Esses povos das margens atlânticas, desde as ilhas do Ocidente Norte da Europa, onde os Celtas estabeleceram os seus santuários, até à Ibéria ou às terras da Atlântida. Essa grande ilha que, no século V a.C., Platão situaria para o Ocidente das Colunas de Hércules ou Estreito de Gibraltar.

Essa grande ilha ou continente atlântico, em que os reis bebiam o vinho em taças de ouro, símbolo solar da imortalidade, e onde a principal cidade era identificada por círculos concêntricos (cromeleques circulares). Nessa grande ilha, em que os povos desenvolviam uma actividade mercantil-marítima, até aos confins dos mares do Norte da Europa e do Sul, a bordejar os contornos Mediterrânicos.

Em Portugal, Razão e Mistério, António Quadros identificará esses navegadores ou missionários da crença na imortalidade da civilização dolménica (que abrangia todo o Ocidente europeu até aos mares do Norte) com os Atlantes, esses habitantes da magnífica Ilha ou Grande Continente, a Atlântida, que teria parcialmente sucumbido por acção de terramotos, da violência das águas ou de cataclismos vulcânicos[2].

O mar sem fim, o Atlântico, constitui, no seu elemento marítimo, a água, a Alma da civilização megalítica, em que a primeira religião solar, fundada na ideia da imortalidade, se constitui e difunde da Bretanha à Irlanda, até aos Mares do Atlântico Norte. Descendentes do povo dolménico ou do sudoeste ibérico, os Atlantes, não são mais do que os enigmáticos lusitanos que, ao receberem a influência dos Celtas, povo detentor da mais avançada metalurgia do ferro consolidaram, no contacto com estes, a sua crença ancestral na vida, para além da morte física. Como nota António Quadros, também os Celtas, oriundos da Europa Central, partilhavam desta crença. E divulgaram-na até às zonas litorais e às ilhas do Norte.

A espiritualidade expressa nos megalitos, nos seus desenhos espirais e circulares, na serpente eterna e nas águas, aliaram-se ao aventureirismo, à missão e ao ocultismo do Ocidente Atlântico. Sobretudo presentes nos povos da orla marítima galaico-portuguesa, foram comuns aos romanos, aos infiéis muçulmanos e aos Cristãos da Reconquista.

A verdade é que, confrontando a religiosidade megalítico-céltica do Atlântico com a religiosidade judaico-cristã, há uma semelhança e uma complementaridade, se não mesmo um reforço profundo. Em tal constatação, não se inscreverá o Culto do Espírito Santo, instaurado em Portugal, pelo rei D. Dinis, e que obteve uma larga adesão popular? A linha Joaquimita da Ordem Franciscana e o estabelecimento da Ordem dos Templários, em Portugal, não terão proporcionado uma viva propagação desses princípios comuns? E não terão sido eles os propugnadores, em Quatrocentos, da Expansão Marítima além-Atlântico para o Sul e para o Ocidente?

Esta dispersão dos Portugueses pelas terras remotas e perigosas do planeta desconhecido, não lembrará toda a diáspora levada a cabo pelos povos dolménicos do Megalitismo? Nos Descobrimentos dos portugueses e dos espanhóis dos séculos XV e XVI, não se desenhava a esperança num futuro promissor e, ao mesmo tempo, saudoso, da Atlântida perdida? Não se poderá vislumbrar mesmo, uma busca dessa Atlântida mítica e esfumando-se nas vagas alterosas do oceano, sem fim?

Não haverá nessa Gesta das Navegações, ao longo do imperial Atlântico, as sombras diáfanas dessa abundância perdida nas águas revoltas  e tormentosas, perdida ou lançada para além... para além do Bojador...?

Como escreveu Francisco Cunha Leão, com os Descobrimentos «o interesse nacional universalizou-se e confundiu-se com o da Civilização»[3]. Depois de tanta espera, o desconhecido a descobrir-se e a abrirem-se por intermédio desse povo luso, a encontrar a novidade, a desocultar o tempo inesperado...da Profecia ou do Desejo.

E, é nestes «tempos novos esperando», que vemos a sibilina Dalila Pereira da Costa: uma Nova Civilização, uma Nova Atlântida, «só a paz celeste espalhando: / a que vem, que no horizonte desponta»[4]. Palavras extraídas do poema titulado «A Nova História». Nova História que é também a Nova Descoberta ou a Nova Saudade, de um tempo difuso e indefinido, que cresce frente às águas oceânicas, frente aos navios que as afrontam e não logram desvendar o que está para além das ondas e dos ecos.

Desvendar com as profecias místicas, desvendar com a gnose da experiência sapiencial do antes, a indicar rumos ainda que encobertos pela névoa marítima do futuro, sempre a ser uma «Força do Mundo». É esta «Força do Mundo» que Dalila Pereira da Costa vivencia e, ao mesmo tempo, procura, entre os sentidos ocultos em todos os sentidos, quer sejam individuais, quer sejam colectivos, como o das nações.

A nau e o graal, como a cruz e a pomba ou a serpente e o sol, são alguns dos símbolos de um trânsito circular de navegações envoltas em sonho e saudade, em difusa esperança num «salvador». Um salvador encoberto talvez, mas vivo como o Espírito Santo, a atravessar o último estádio da humanidade expectante, dolorosa, mas a vigiar como Cristo ensinou.

Em A Nova Atlântida, Dalila Pereira da Costa escolhe Fernando Pessoa como o representante supremo desse espírito que conduz à redenção da pátria, a qual terá de edificar o Quinto Império do Espírito Santo, conforme o prenunciaram o Bandarra de Trancoso e o Padre António Vieira, no século XVII, na “hora” em que a Pátria do futuro estremecia, perante a prolongada dominação estrangeira. A Restauração da independência nacional, em 1640, era sobretudo, a chegada do “Desejado” para realizar Portugal. Porque, como diz Dalila Pereira da Costa «é o sagrado que justifica o profano»[5]

A terra portuguesa, terra dos povos dolménicos, de celtas e lusitanos, onde se praticaram os grandes cultos solares da imortalidade, é, para Dalila, uma terra-mãe, qual deusa da fertilidade ou da Vida. A terra portuguesa é, igualmente, a pátria dos Atlantes que terão, nos tempos vindouros, de fazer ressurgir das águas, a sua Atlântida magnífica e perdida nas trevas do oceano ou nas catacumbas do pecado, e à espera do regresso à vida. É, neste contexto, que Portugal alcançará o seu sentido pleno: o sentido universalista que o messianismo já anunciava.

A Mensagem de Pessoa, publicada em 1935, proclama esse sentido de Portugal, enunciado já com a revista Orpheu (1917), a que estava ligada a esperança numa Renascença Nova. A Orpheu, publicada simultaneamente em Portugal e no Brasil, tinha em vista criar essa Comunidade de Língua Portuguesa que o Atlântico (ou o espírito da grande Atlântida?) tendia a unir, não a separar.

Unir, para ser possível a Portugal transcender as suas fronteiras  terrestres, cortadas abruptamente pelo mar, e estabelecer os fundamentos da futura civilização Atlântica. Já não assente na Europa trans-pirenaica, mas em Portugal, ou seja, no Mundo de Língua Portuguesa. No poema «Ultimatum», Pessoa explana a sua crença absoluta naquele “Super-Homem” (o “Super-Camões” que descobre?) proclamado por Nietzsche, mas que falaria a Língua Portuguesa.

E esse “super-homem” era não só «o mais forte», mas «o mais completo», não era só «o mais duro», mas «o mais complexo», não era só «o mais livre», mas «o mais harmónico»[6]. Então, proclama, com entusiasmo, o “heterónimo” Álvaro de Campos: «(...) na barra do Tejo, de costas para a Europa, (...) fitando o Atlântico e saudando abstractamente o infinito»[7]. É a “hora” da «vinda de uma Humanidade matemática e perfeita!»[8].

E, em versos da Ode Marítima, canta a nova civilização a «largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar / Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância abstracta». Ir mais além com a aventura dos navegantes-missionários celtas de que descendemos, para construir o Novo Mundo, já não do Corpo, mas do Espírito, que é a Língua (para realizar a promessa feita à Humanidade).

«Ah, seja como for, partir», entoa o poeta mirando o Atlântico da esperança que é Portugal, a prolongar-se para além das praias e dos arvoredos. Ultimatum, a palavra última, a última palavra a romper o silêncio e o apagamento, a palavra-final de algo que é preciso quebrar, para se lhe dar nova forma, novo rumo, novo destino.

A palavra última de Pessoa está hoje, viva e actuante ou acto, em pensadores, como Dalila Pereira da Costa: O Esoterismo de Fernando Pessoa, obra publicada em 1978 e a conferência Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro, que foi dada à estampa, no mesmo ano, são alguns exemplos de sua adesão ao pensamento expresso nos escritos de Fernando Pessoa como, por exemplo, o poema Ode Marítima, que a autora de Hora de Prima entende ser um dos mais significativos. Fernando Pessoa «sustentará em si com o peso desta nova missão colectiva da pátria»[9], acentua Dalila. Depois, com «alma atlântica», «tudo se fará, a partir das margens marítimas de Portugal, virando as costas à Europa»[10].

«Virar as costas à Europa» e criar uma Nova civilização Atlântica! O grande projecto está aí, e o grande enigma também. Um grande mito eleva-se no espaço, e fortifica-se na terra dos “patres”, mortos e a vivificando-se  na memória de um hoje, a viajar para o futuro, “at aeternitatem”? Ensina-nos Dalila Pereira da Costa: «a Mensagem surge como mito e rito que conta a criação duma pátria, tal como outra cosmogonia»[11]. E ainda ajuíza, sibilinamente: «A vinda do Encoberto marcará o fim da História»[12].

Na sua obra A Nova Atlântida publicada, em 1977, Dalila sublinhava já a importância de Fernando Pessoa na sua teorética, no início do capítulo «A alma atlântica». Aqui, a autora detém-se a averiguar o sentido primitivo da comunidade atlântica. Com a argúcia dos profetas, Dalila Pereira da Costa, entende que foi a união dos povos do Atlântico Norte com os ibéricos, designadamente com os celtas de Entre Douro e Minho, que viabilizou a partilha da passagem do Antárctico, no tempo de D. Afonso V de Portugal  e de Cristiano I da Dinamarca, ou ainda que as cruzadas, com origem na cidade do Porto, chegassem às quiméricas Ilhas das Sete Cidades dispersas algures no Atlântico.

A filósofa do simbolismo português infere, igualmente, que o tratado de Tordesilhas celebrado, em 1492, entre Portugal e Castela, ao dividir o mundo pelos dois países ibéricos, é revelador, na sua expressão místico-espiritual, de algo que se relaciona, ou que fundamenta, a verdadeira missão de Portugal. Lembrando «o sentido sagrado da terra»[13], Dalila Pereira da Costa considera que a Península Ibérica, esse bastião do sagrado, conterá, depois do Tratado de Tordesilhas, o pré-anúncio da «futura civilização dos povos do Atlântico Sul»[14].

E a autora de Místicos Portugueses do século XVI  (Lello  & Irmão, Porto, 1986) vê o Encoberto como símbolo da dimensão futura do Mundo, que o Português criou. A chegada do D. Sebastião do “Espírito”, coincidirá com «o nascimento de uma pátria, como nova criação, para o homem e para o mundo»[15]. Seria, como preconizava Teixeira de Pascoaes, um «Regresso ao Paraíso» no futuro.

O Atlântico Norte, o da espiritualidade tradicional céltica (irlandesa e britânica), une-se ao Atlântico Sul, na zona de cruzamento das suas águas, que é, aproximadamente, correspondente à orla marítima das terras da Serpente e (ou) de Santa Maria: do círculo e do oceano.
Símbolos de eternidade e da imagem «mátria», esse mito «pátrio» por excelência, como escreve Dalila em A Nau e o Graal. Estes, os dois símbolos maiores do espírito lusíada, a ser «ilha longínqua e velada», em que «tudo será procura da Vida, na sua existência verdadeira, fora do tempo»[16] e a ser «a terra procurada» ou «essa ilha prometida e procurada nas águas do oceano»[17].

Se como escreveu Gordon Childe, «as superstições populares de Portugal, da Bretanha e da Irlanda são reminiscências da tradição megalítica»[18], não duvidamos que a «nova civilização atlântica» tenha de ser edificada na «Ocidental Praia Lusitana» cuja «aculturação celtibérica» trouxe «o culto do fogo» na cultura do Ferro (e da forja), que possuiam e propagaram na terra de «Sephes» ou Frons Ophiusae (Frente das Serpentes), como titulou o romano Avieno o seu poema marítimo.

Com a gesta dos Descobrimentos Atlânticos, a missão dos Atlantes prolongar-se-á no mundo que o português criou, ou seja, no universalismo planetário da Expansão marítima Quatrocentista. Uma Nova Idade era alcançada pela pequena nação-nau, aquela que Sampaio Bruno traçou nas últimas páginas de O Encoberto (1904), como a Pátria da Liberdade, da Justiça e da Paz e que Teixeira de Pascoaes definiu em A Arte de Ser Português (1915). Que Fernando Pessoa tentou eternizar na sua teoria política (exposta numa série de escritos fragmentários) sobre o Império Espiritual da Nova Civilização de Língua Portuguesa. E ergueu a esperança na revista Orpheu (1917), em que Portugal e o Brasil constituem um único projecto de Futuro. Agora, a civilização do Atlântico já não é europeia, é universal.

O Império rasgará os mares, de novo, e como na gesta descobridora o Atlântico unirá, mas diferentemente dela, não mais irá separar. O mundo da Novidade crescerá sob as luzes da Ciência (com destaque para a Matemática, gnose suprema), escreveria Fernando Pessoa nas últimas linhas do poema «Ultimatum». E qual Pessoa, Dalila Pereira da Costa escreve, em cada livro que publica, um manifesto em defesa do Atlantismo, Saudade e Alma da Lusitania.

A propósito, na obra Antropologia Luso-Atlântica, Almeida Langhans diz-nos que a mais universal de todas as civilizações, é a civilização atlântica. E vaticina: «A grande civilização oceânica que se avizinha é uma civilização universalista e espacial feita à medida do cosmos»[19]. Logo a seguir, acrescenta: «O grupo altamente miscigenado do luso-atlântico difundido é já um grupo de raça cósmica que espera a sua vez espacial»[20].

O luso-atlântico ou a raça cósmica está no espaço peninsular ibérico à espera de criar as condições para a sua plena realização. Já não dentro das fronteiras da estreita faixa ocidental batida pelo Atlântico, mas pelo Atlântico dentro, unindo o Norte e o Sul, o Ocidente e o Oriente. É precisamente nesta raça cósmica que fala Dalila Pereira da Costa quando escreve, a propósito do Poeta maior da Orpheu: «como ficou memorado no Ultimatum veremos que esse acto é um acto de suprema iniciação»[21]. Este acto implicará, no futuro, a edificação da Comunidade Atlântica, em que a «Tradição-Língua» Portuguesa terá o Império.

Se assim não for, a civilização Ocidental decaída, não se poderá erguer com uma cultura verdadeiramente viva. É que a Europa trans-pirenaica, ao privilegiar o “Reino da Matéria” sobre o “Reino do Espírito”, não desenvolveu, em si, na actualidade, a dimensão da imortalidade.

Essa imortalidade que, desde os tempo do megalitismo dolménico, foi a fé maior dos lusitanos, herdeiros do espírito dos Atlantes da Ibéria. A civilização do futuro terá de se localizar, no seu âmago, ou melhor dizendo, no cruzamento das margens atlânticas dessas vastas regiões que compõem, e dão corpo físico, aos países que comungam da Língua Portuguesa.

A Língua Portuguesa será a Pátria Universal de um Futuro (o Futuro Prometido pelo Império do Espírito Santo), a desenhar-se já nas caravelas, nas cruzes de Cristo, no Santo Graal. Sob o espesso manto do nevoeiro, Dalila Pereira da Costa exalta o mar, esse pater a envolver-se no húmus mátrio, e a anunciar a «realidade cosmogónica da alma portuguesa»[22].

Como nos tem ensinado a sibila-Dalila, que o verso tornaria rima, os portugueses «esperam junto à porta do Douro, envolvidos nas velhas sagas marítimas e no doce canto dos pássaros proféticos»[23].

Se assim puder vir a ser, exultemos na espera do Império do Espírito, porque os deuses nos honraram ao fazê-lo sob a égide da Língua Portuguesa.

Teresa Ferrer Passos                                          





* Conferência integrada no Colóquio subordinado ao tema «Dalila Pereira da Costa e as Raízes Matriciais da Pátria», proferida no Ateneu Comercial do Porto, em 17 de Maio de 1996; in Dalila Pereira da Costa e as Raízes Matriciais da Pátria - Colóquio, Fundação Lusíada, 1998, pp.129-137.
[1] Ob.Cit., Lisboa, Fundação Lusíada, 1993, p.72.
[2] Platão, Timeu in Ob. Cit., p.119.
[3] O Enigma Português, Lisboa, Guimarães Editores, p.208.
[4] Hora de Prima, Lisboa, Fundação Lusíada, 1993, p.71.

[5] A Nova Atlântida, Porto, Lello e Irmão, 1977, p. 238.
[6] «Ultimatum», in Obras Escolhidas,  Ed.Verbo, 1985, vol. 4, p.193.
[7] Ibidem.
[8] Ibidem.
[9] Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro, Porto,1978, p.9.
[10] Ibidem, p. 15.
[11] O Esoterismo de Fernando Pessoa, Porto, Lello e Irmão, 1978, p.162.
[12] Ibidem, p.191.
[13] Ibidem, p.16.
[14] Ibidem, p.16.
[15] Ibidem, p.77.
[16] A Nau e o Graal, Porto, Lello e Irmão, Porto, 1978, pp.63-64.
[17] Ibidem, p.62.
[18] A Pré-história da Sociedade Europeia, Lisboa, Publicações Europa-América, 1960, p.150.

[19] Antropologia Luso-Atlântica, Lisboa, 1970, p.253.
[20] Ibidem, p.257.
[21] Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro, Porto, 1978, p.15.
[22] A Nova Atlântida, Porto, Lello e Irmão, 1977, p.234.
[23] Hora de Prima, Lisboa, Fundação Lusíada, 1993, p.60.


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