- LEMBRANÇA DE
DALILA PEREIRA DA COSTA (1918-2012)
de ser para além doutro
Oceano»
Fernando Pessoa,
“Para Além Doutro
Oceano” (poema), 1917
Terrível
superação e bendita, a de ser Pessoa o escolhido para abrir o caminho novo da
pátria exausta, e, com ela, de todas as pátrias moribundas! Todas as pátrias a
serem, no cume da montanha do tempo, uma só pátria a escrever-se na Europa
apagada ainda por um mundo vil e degenerescente.
Num mar de
oceanos múltiplos, cresceram os povos de tradições tão várias, a mudar com os
séculos e os milénios, e, ao mesmo tempo, ensinando aos vivos identidades do
presente e desvios da memória do passado.
Cada um, a ditar o cérebro sem amarras do homem-super, sem diferenças de
rumos ou desigualdades insuperáveis.
Aqui, num
sempre Portugal a respirar Pessoa, nasce o imenso futuro da ideia nova que é
capaz da ousadia, mesmo da temeridade de um oceano longínquo e imortal, podendo
transformar povos inteiros num povo redimido por essa Europa a transbordar de espírito e de emoção,
numa colheita imensa de sementes sábias.
Rumo à Europa
dos novos descobridores de um mundo inteiro a dar-lhe a largueza dos mundos que
o grego criou na Odisseia e na Ilíada mediterrâneas e que o português
recriou nas navegações das Américas e do Índico e do Pacífico, essas geografias
alheadas de si e sem saberem nada de quem chegava, urgente e inquieto.
Na oratória do
Pessoa do Ultimatum (ass. pelo
heterónimo Álvaro de Campos na revista Portugal
Futurista, nº1 e único), datado de 1917, e do poema “Para Além Doutro
Oceano” (revista Orpheu, nº 3,
curiosamente também de 1917), Dalila Pereira da Costa vê o espectáculo pessoano
das ondas, atravessadas com o lápis da cruz e da vitória, a inscrever-se no
Velho continente das sabedorias e a elevar-se até à superação humana de Língua
Portuguesa. Dalila vê a frota dos navegantes, como Pessoa, desde o estuário do
Tejo até às margens do Danúbio.
Em Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro, Dalila aborda a profecia do Ultimatum e de Para Além de Outro Oceano. Quando escreveu este opúsculo, no ano de
1977, viu uma Europa mundializada sob a égide da civilização luso-atlântica.
Hoje, numa
perspectiva idêntica, vemo-la, contudo, diferente. Vemo-la agora Nova
Civilização a renascer em novas literaturas sem papel, desenrolando-se em todo
o papel invisível a circular, intenso e livre entre mares incomensuráveis.
Agora, vislumbramos abismados os novos mundos da internética geração, dispersa e
mesmo assim inteira, numa globalidade exaltante e, ao mesmo tempo, promissora
via de espaços de muitos sentidos insuspeitáveis e cheios de novidade.
Uma Nova
Civilização europeia começa, hoje, na tinta impressa nos ecrãs dos computadores
e no olhar dos atlantes a sobreviverem num Portugal imerso em nevoeiro. E todos
os navegadores da cabeça da Europa que é Portugal, essa janela aberta para as
terras do longe atlântico, essa vontade de poder ainda a perecer, ressurgem das
águas das salgadas marés, a espraiarem-se na voz emudecida e viva dos náufragos
esgotados de sede e de ardor.
Com o Ultimatum nas mãos, Pessoa segue um rumo
certo e intemerato entre linhas geométricas e astrolábios, junto a terras novas
e secretas, pejado com todas as filosofias do conhecimento humano. Entre
quadros negros de cálculos audazes de infinito a germinar na escola futurista
de Sagres, os nautas do mar salgado de Quatrocentos unem-se hoje aos
internautas dos espaços computacionais do futuro.
Num percurso de
novíssimas máquinas, com a inteligência a transcender-se para vencer toda a
mística de um universo a ser decifrado pelos novíssimos mares augurados na Mensagem (1934), forjam-se altos
desígnios a contornar todos os tempos abismados com o emergir do tempo novo do
super-homem. E foi Pessoa quem, em 1917, recriou um Super-Homem perplexo com a
complexidade, com o saber completo e a arte da harmonia.
Como profeta da
Europa decadente e a renascer, Pessoa pré-anunciava o Super-Homem no Ultimatum, com a audácia da Raça dos
Descobridores e a lucidez da loucura mais funda que os abismos marítimos. Em Orpheu, Portugal, e o Homem do Futuro,
Dalila Pereira da Costa descobria e tocava o Pessoa ávido da força dos heróis e
intérprete da história oculta a não iniciados da sua Pátria dispersa pelo
mundo. Vendo nela todas as pátrias, vendo tudo com todos os olhares e com todas
as almas, Pessoa ascende ao topo da totalidade do Super-Homem teorizado pelo
filósofo alemão Nietzsche em Assim Falava
Zaratustra, escrito entre 1883-85. Um Super-Homem todo a espargir os seus
limites, superados enfim.
Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro, escrito em
1977, é um pequeno ensaio em que Dalila Pereira da Costa, a filósofa mística do
Porto, faz renascer a “pequena pátria lusitana” com as tintas da exaltação mística
desse Pessoa transfigurado no espantoso Ultimatum do ano de 1917. A esse
expectante homem novo, prestes a eclodir numa Europa à procura de um Caminho
para o realizar, em liberdade e na partilha fraternal, a Nova Civilização salta
do seu visionarismo futurista, a alargar os braços até abraçar o mundo todo.
Ao lembrar este
opúsculo da autora de O Exoterismo de
Fernando Pessoa, alguns meses após a sua morte, sem ser morte verdadeira,
pois Dalila aqui está viva na nossa lembrança, recordamos aquilo a que ela
chamou a «suprema ascese de Pessoa visando a criação de um homem novo ou mundo
novo (a partir da sua verdadeira Pátria, o mundo de Língua Portuguesa)». Como
Dalila bem salienta também, Pessoa continuou a profética oratória do Padre
António Vieira que, no século XVII, previa uma espantosa “História do Futuro” neste país herdeiro da mítica Atlântida, nesta
escarpada costa marítima do Ocidente da Europa.
Escrevendo a
pensar na gente lusa dos Descobrimentos para o mundo, o Ultimatum pré-anunciava, dezassete anos antes, o livro de poemas Mensagem publicado em 1934, apenas um
ano antes da morte do “Super-Camões”. Os portugueses, como Dalila Pereira da
Costa, ainda esperam pela realização dos vaticínios do Ultimatum. Esperam por um magnífico monarca, qual rei D. Sebastião,
O Desejado, a arribar ao Tejo talvez n’ A
Última Nau, poema profético dessa enigmática e imortal “hora”, que Pessoa
nos anunciou numa hora incerta que não vamos esquecer.
Na verdade,
Dalila Pereira da Costa também nunca a conseguiu esquecer, porque a “hora” para
o mundo, precisamente de Língua Portuguesa virá, ainda que silenciosa, mas para
ser no mundo uma «Gaia Ciência» a
guiar os povos, cada um e todos a envolverem-se no magnífico Futuro da
humanidade que se superou e construiu uma Civilização «realizada pela alma
atlântica». Uma «Civilização universal vivificada pela seiva duma cultura
cosmopolita», como acentuaria Dalila nas últimas páginas do opúsculo que
recordámos neste ensejo.
A saudosa
Dalila Pereira da Costa que se dedicou afanosamente ao mistério da
portugalidade que Pessoa tanto escalpelizou. Na senda do Poeta dos heterónimos,
Dalila viu Portugal a perecer e edificou a esperança. Fê-lo renascer na “hora”!
A “hora” vaticinada pelo autor de Ultimatum
a contemplar o Tejo no cais da partida «para além doutro Oceano».
Lisboa, 18 de Maio de 2012
Teresa Bernardino*
*Também assina Teresa Ferrer Passos
Publicado na revista Nova Águia, Nº 10 - 2º Semestre 2012, pp. 118-119.