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segunda-feira, 10 de outubro de 2016

No vale do mundo


Os olhos habituam-se à penumbra
E vão a pouco e pouco percebendo
O virginal delírio colorido
Das borboletas que voam só de noite.

Uma raposa espreguiça-se na relva
E a relva é branca como no Antártico
E os olhos brancos da raposa branca
Tingem de ser o nada do deserto.

10/10/2016

Fernando Henrique de Passos

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Perseguição



Andorinha-do-mar ártica

A voz que me falou de noite
Não quero escutá-la de dia.
Ah, nada existe em mim que se afoite
A escutar de novo o que essa voz dizia!

Chamou-me abismo de mim;
Chamou-me desencontrado;
Traidor que de longe vim
Crucificar meu sonho alado.

Chamou-me inútil e vão,
Tôrre de egoismo que a si própria mente.

Eu encolhi os ombros, indiferente...

Mas porque não escutaste, coração?

Eurico Collares Vieira, «Flores de Abismo»,
Colecção Poesia Nova, nº2, Lisboa, 1944.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Receita


Para quem busca o Absoluto:
Esmague o ego num almofariz
(caule, folhas, flores e fruto)
Mas deixe intacta a raiz.

Faça com o pó uma tisana,
Coloque-a num frasco destapado
E, à centésima semana,
Lave a raiz no preparado.

Regue-a com a luz que pôde atravessar
A noite e o seu breu
E os raios de sol que vivem no luar
Farão desabrochar um novo Eu.

7/12/2015

Fernando Henrique de Passos

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Último crepúsculo

Na plataforma giratória,
No centro de todas as incógnitas,
No meio de naves que aterram e descolam
Em escala apressada entre geometrias,
O zumbido azul do escaravelho calmo
Caminhando pata ante pata até ao pôr-do-sol,
Seguindo a certeza rectilínea
Que aponta o horizonte licoroso de lâminas de luz
Onde imerge por uma noite apenas
A promessa do dia de amanhã.


25/8/2014

Fernando Henrique de Passos

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Vento


Tudo se desmorona excepto o vento.
E o frio que gela e arrepia
Atravessa as ruínas, a noite, o esquecimento,
Até abrir, num gesto que é quase violento,
As portas que vão dar ao novo dia.

11/8/2014

Fernando Henrique de Passos

domingo, 27 de outubro de 2013

Clarões



(A foto da manhã seguinte era um buraco na folha do jornal.
Ninguém podia olhar sem cair lá dentro.)

flash!

Pedaços de um sonho
No meio da noite

O asfalto molhado
A chuva miúda

E eu de pijama
No centro do medo
Debaixo do néon
No gelo da luz

flash!

Os faróis de um carro
(Restos de outros sonhos)

Relâmpagos mortos
Silêncios aquosos
Sem luz os semáforos

Há um cruzamento
Na esquina das horas

Choque de minutos
Na urbe deserta

flash!

E passam destinos
Nas luzes do céu
(Luzes de avião?
Rastos de cometa?)

Trovões muito ao longe
Nuvens soterradas
Espasmos do negrume

flash!

Faróis de outro carro
E o som ancestral
E reconfortante
Dos pneus embebidos
Da água da estrada

flash!

Luz de uma lanterna
Ronda do acaso
Pisando palavras
Rostos desbotados
Flocos de papel

flash!

Um ponto vermelho
Brasa de um cigarro
Alguém que vem lá

flash!

A luz que me cega
Que estala no ar
Bate nas paredes
Faz fendas no chão

A fúria do vento
A água que fere
Os gritos do céu
A terra a uivar

Luz por todo o lado
Luz que faz doer
Nas casas nas portas
Janelas jardins

flash!

Um túnel na luz
Um golpe no espaço
Luz que é mais que luz
O Sol a um passo

FLASH!


27/10/2013

(Poema inédito)

      Fernando Henrique de Passos

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O centro do lado de fora fica do lado de dentro


Entro no centro de mim,
Tacteio o escuro.
Não sei porque vim
Nem sei exactamente o que procuro.

O vulto da noite espreita da varanda
O vulto das estrelas na latada.
Vejo um relógio que não anda.
Vejo uma ampulheta estilhaçada.

Espalhada pelo chão pressinto a areia
Formando um rosto de criança.
Não sei como é que o vento revolteia
Se o tempo suspendeu a sua dança.

Para lá da abóbada celeste,
Fora do palco e do cenário,
Dom Quixote por desfastio investe
Contra o fantasma de um deus imaginário.

E eu, no centro da noite milenar,
Contemplo o meu rosto antepassado
E procuro um sorriso atrás do esgar
Do cavaleiro descentrado.

19/11/2012

Fernando Henrique de Passos

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Do Lado de Fora da Noite



Desce à cidade.
Desce à baixa da cidade,
À parte velha:
Lá tudo são sinais.
Deves ir de noite.
Repara no brilho que há à porta do saloon,
Mas não entres.
(Não podes ainda permitir que a realidade
Se substitua às suas representações.)
Caminha ao acaso em todos os sentidos,
Por todas as ruas,
Mas procura ruas sempre mais estreitas,
E quando encontrares uma rua tão estreita que te esmague,
Nela haverá uma só porta:
Abre-a: estarás em tua casa.
Liga o televisor antiquado.
O preto-e-branco ofusca-te.
Mergulhas nas várias tonalidades de cinzento
E deixas-te ir ao fundo.
Voltas à superfície num jardim diurno
Na parte mais nova da cidade.
Mas não desistes,
Esperas a noite,
Voltas a descer até à baixa,
Até à parte velha da cidade.
E voltarás a encontrar a tua casa,
E inumeráveis vezes a perderás de novo,
Pois será essa a tua forma de existir.
Mas chegará a noite em que tinhas aberto a porta do saloon
E tinhas visto para lá das representações
E tinhas entrado
E tinhas decidido ficar
Quando o aparelho te acordou
E percebes que estiveste acordado todo o tempo.
Mergulhaste então nas várias tonalidades coloridas
E deixaste-te purificar por elas.
Deita-te agora e abre os olhos,
Descobre o que a realidade te guardou:
Estar à entrada seria a tua casa:
Podes entrar.

6/10/2012

Fernando Henrique de Passos