quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A propósito de «Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro»

-  LEMBRANÇA DE
DALILA PEREIRA DA COSTA (1918-2012)





«Num sentimento de febre
de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa,
“Para Além Doutro Oceano” (poema), 1917
  

Terrível superação e bendita, a de ser Pessoa o escolhido para abrir o caminho novo da pátria exausta, e, com ela, de todas as pátrias moribundas! Todas as pátrias a serem, no cume da montanha do tempo, uma só pátria a escrever-se na Europa apagada ainda por um mundo vil e degenerescente.
Num mar de oceanos múltiplos, cresceram os povos de tradições tão várias, a mudar com os séculos e os milénios, e, ao mesmo tempo, ensinando aos vivos identidades do presente e desvios da memória do passado.  Cada um, a ditar o cérebro sem amarras do homem-super, sem diferenças de rumos ou desigualdades insuperáveis.
Aqui, num sempre Portugal a respirar Pessoa, nasce o imenso futuro da ideia nova que é capaz da ousadia, mesmo da temeridade de um oceano longínquo e imortal, podendo transformar povos inteiros num povo redimido por essa  Europa a transbordar de espírito e de emoção, numa colheita imensa de sementes sábias.
Rumo à Europa dos novos descobridores de um mundo inteiro a dar-lhe a largueza dos mundos que o grego criou na Odisseia e na Ilíada mediterrâneas e que o português recriou nas navegações das Américas e do Índico e do Pacífico, essas geografias alheadas de si e sem saberem nada de quem chegava, urgente e inquieto.
Na oratória do Pessoa do Ultimatum (ass. pelo heterónimo Álvaro de Campos na revista Portugal Futurista, nº1 e único), datado de 1917, e do poema “Para Além Doutro Oceano” (revista Orpheu, nº 3, curiosamente também de 1917), Dalila Pereira da Costa vê o espectáculo pessoano das ondas, atravessadas com o lápis da cruz e da vitória, a inscrever-se no Velho continente das sabedorias e a elevar-se até à superação humana de Língua Portuguesa. Dalila vê a frota dos navegantes, como Pessoa, desde o estuário do Tejo até às margens do Danúbio.
Em Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro, Dalila aborda a profecia do Ultimatum e de Para Além de Outro Oceano. Quando escreveu este opúsculo, no ano de 1977, viu uma Europa mundializada sob a égide da civilização luso-atlântica.
Hoje, numa perspectiva idêntica, vemo-la, contudo, diferente. Vemo-la agora Nova Civilização a renascer em novas literaturas sem papel, desenrolando-se em todo o papel invisível a circular, intenso e livre entre mares incomensuráveis. Agora, vislumbramos abismados os novos mundos da internética geração, dispersa e mesmo assim inteira, numa globalidade exaltante e, ao mesmo tempo, promissora via de espaços de muitos sentidos insuspeitáveis e cheios de novidade.
Uma Nova Civilização europeia começa, hoje, na tinta impressa nos ecrãs dos computadores e no olhar dos atlantes a sobreviverem num Portugal imerso em nevoeiro. E todos os navegadores da cabeça da Europa que é Portugal, essa janela aberta para as terras do longe atlântico, essa vontade de poder ainda a perecer, ressurgem das águas das salgadas marés, a espraiarem-se na voz emudecida e viva dos náufragos esgotados de sede e de ardor.
Com o Ultimatum nas mãos, Pessoa segue um rumo certo e intemerato entre linhas geométricas e astrolábios, junto a terras novas e secretas, pejado com todas as filosofias do conhecimento humano. Entre quadros negros de cálculos audazes de infinito a germinar na escola futurista de Sagres, os nautas do mar salgado de Quatrocentos unem-se hoje aos internautas dos espaços computacionais do futuro.
Num percurso de novíssimas máquinas, com a inteligência a transcender-se para vencer toda a mística de um universo a ser decifrado pelos novíssimos mares augurados na Mensagem (1934), forjam-se altos desígnios a contornar todos os tempos abismados com o emergir do tempo novo do super-homem. E foi Pessoa quem, em 1917, recriou um Super-Homem perplexo com a complexidade, com o saber completo e a arte da harmonia.
Como profeta da Europa decadente e a renascer, Pessoa pré-anunciava o Super-Homem no Ultimatum, com a audácia da Raça dos Descobridores e a lucidez da loucura mais funda que os abismos marítimos. Em Orpheu, Portugal, e o Homem do Futuro, Dalila Pereira da Costa descobria e tocava o Pessoa ávido da força dos heróis e intérprete da história oculta a não iniciados da sua Pátria dispersa pelo mundo. Vendo nela todas as pátrias, vendo tudo com todos os olhares e com todas as almas, Pessoa ascende ao topo da totalidade do Super-Homem teorizado pelo filósofo alemão Nietzsche em Assim Falava Zaratustra, escrito entre 1883-85. Um Super-Homem todo a espargir os seus limites, superados enfim.
Orpheu, Portugal e o Homem do Futuro, escrito em 1977, é um pequeno ensaio em que Dalila Pereira da Costa, a filósofa mística do Porto, faz renascer a “pequena pátria lusitana” com as tintas da exaltação mística desse Pessoa  transfigurado no espantoso Ultimatum do ano de 1917. A esse expectante homem novo, prestes a eclodir numa Europa à procura de um Caminho para o realizar, em liberdade e na partilha fraternal, a Nova Civilização salta do seu visionarismo futurista, a alargar os braços até abraçar o mundo todo.
Ao lembrar este opúsculo da autora de O Exoterismo de Fernando Pessoa, alguns meses após a sua morte, sem ser morte verdadeira, pois Dalila aqui está viva na nossa lembrança, recordamos aquilo a que ela chamou a «suprema ascese de Pessoa visando a criação de um homem novo ou mundo novo (a partir da sua verdadeira Pátria, o mundo de Língua Portuguesa)». Como Dalila bem salienta também, Pessoa continuou a profética oratória do Padre António Vieira que, no século XVII, previa uma espantosa “História do Futuro” neste país herdeiro da mítica Atlântida, nesta escarpada costa marítima do Ocidente da Europa.
Escrevendo a pensar na gente lusa dos Descobrimentos para o mundo, o Ultimatum pré-anunciava, dezassete anos antes, o livro de poemas Mensagem publicado em 1934, apenas um ano antes da morte do “Super-Camões”. Os portugueses, como Dalila Pereira da Costa, ainda esperam pela realização dos vaticínios do Ultimatum. Esperam por um magnífico monarca, qual rei D. Sebastião, O Desejado, a arribar ao Tejo talvez n’ A Última Nau, poema profético dessa enigmática e imortal “hora”, que Pessoa nos anunciou numa hora incerta que não vamos esquecer.
Na verdade, Dalila Pereira da Costa também nunca a conseguiu esquecer, porque a “hora” para o mundo, precisamente de Língua Portuguesa virá, ainda que silenciosa, mas para ser no mundo uma «Gaia Ciência» a guiar os povos, cada um e todos a envolverem-se no magnífico Futuro da humanidade que se superou e construiu uma Civilização «realizada pela alma atlântica». Uma «Civilização universal vivificada pela seiva duma cultura cosmopolita», como acentuaria Dalila nas últimas páginas do opúsculo que recordámos neste ensejo.
A saudosa Dalila Pereira da Costa que se dedicou afanosamente ao mistério da portugalidade que Pessoa tanto escalpelizou. Na senda do Poeta dos heterónimos, Dalila viu Portugal a perecer e edificou a esperança. Fê-lo renascer na “hora”! A “hora” vaticinada pelo autor de Ultimatum a contemplar o Tejo no cais da partida «para além doutro Oceano».

Lisboa, 18 de Maio de 2012

Teresa Bernardino*

*Também assina Teresa Ferrer Passos

Publicado na revista Nova Águia, Nº 10 - 2º Semestre 2012, pp. 118-119.

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