Deve haver uma maneira de olhar as coisas todas,
Os espaços entre formas e pessoas,
Os escravos que vão por avenidas
No delírio das tardes passageiras.
ah… a porta vai-se abrir
havia ali palavras
a tessitura da poesia
as formas recorrentes
Um navio atraca à porta do café.
Poesia:
O capitão anota no diário
O estrangulado trânsito cinzento.
citadino
o matraqueamento dos motores
o espesso nevoeiro
as formas recorrentes
Deve haver uma maneira de olhar as coisas todas,
Um ponto oculto.
Todas as redes têm falhas
Por onde o sol mergulha.
a repetição dos textos sem sentido
sentidos emergentes
o sentido correndo pelas formas
como água por canais
Deve haver uma maneira de olhar as coisas todas
Que seja semelhante a respirar.
(Curioso estado do éter luminífero
Que se quer transformar em sucessivos impulsos de poesia.)
havia ali palavras
citadinas
ofegantemente descentradas
a respirar ideias
O capitão pegou na pena do seu pato;
O capitão convocou o pré-fonema exacto;
O mar fustigava as portas do saloon;
Serpentes sorviam açúcar ao balcão.
ah…
os sons que se organizam
o pêndulo de prata
(não me posso esquecer de respirar)
Um caminho entre as pessoas e as formas;
Um matraquear matraqueante;
A cadência que embala os marinheiros;
O relógio de sala do navio.
contar os sopros
as palpitações
a hipnose das palavras
(não me posso esquecer de respirar)
O som dos escapes a marulhar nas rochas.
Ah, a recorrência das imagens,
As vibrações do éter no bistrot,
A legislação dos actos da matéria.
formas
pessoas
palavras
redes
Deitados no convés da realidade,
Olhando o azul do firmamento.
Ah, os espaços entre as cores,
Notas de música paradas.
que as palavras digam menos
para conter e contar mais
invólucros vazios
recebendo as sensações do espaço
Cristalizando a forma das marés,
Detendo o arrastado arrastar dos dias e dos anos,
O navio imóvel à porta das palavras,
Desertas amuradas sobre o mar.
ah… a porta vai-se abrir
o portão das formas recorrentes
a auto-referência dos sentidos
as vibrações do tempo
Reduzindo ao mínimo a poesia
O choque das ondas contra o casco
Repetia a velhíssima canção
Dos sons parados como estátuas.
a lógica dos sons
sincopar mais
rendilhar as estruturas
repetir re-pe-tir re…pe…tir
A prolongada repetição das mesmas formas
Provocará a ilusão de uma poesia;
Rebentarão as imagens como sóis,
A quilha do navio será um gume.
ah… a porta vai-se abrir
as dádivas dos deuses
dançar nas nuvens e nas ondas
romper o tempo com as formas
O gume das serpentes sobre o mar
Quer forçar as portas do saloon.
A sirene atravessa cinzentudes,
Os marinheiros amotinam a manhã.
ah… a porta vai-se abrir
se os sons se organizarem
(não me posso esquecer de respirar)
O capitão empunhou uma escopeta,
As serpentes caíram sobre o mar.
O diário encheu-se de vermelho,
A cerração abriu-se à claridade.
ah… a porta vai-se abrir
(não me posso esquecer de respirar)
Três figuras à porta do saloon
Sorviam sons pelas portas das narinas.
Uma avalanche de ideias como pedras
Levou consigo as mesas e cadeiras.
a porta abriu-se Ah!
28/4/2012
Fernando Henrique de Passos