terça-feira, 8 de maio de 2012

Bodas Alquímicas

PERSONAGENS

Ernesto Sampaio
Fernanda Alves


QUADRO ÚNICO

(o palco, só o palco, com tudo o que faz um palco, sem mais;
madeira, pano e cordas)


ERNESTO SAMPAIO – Da combustão do nosso encontro, duas partes se separarão: uma prosseguirá em vida, outra afastada será pela morte. Não morreremos juntos; um de nós sofrerá a ausência do outro, sofrerá a dor mais atroz… a solidão! Que destino tão atroz para aquele que ficar…
FERNANDA ALVES – Que dizes, amor?
ERNESTO SAMPAIO – Temo por um de nós; temo pelo que ficar. Contra o mundo sórdido, contra a matéria abjecta tivemos nós, maravilha, o nosso Amor; vivemos sempre em fogo, enquanto à nossa volta tudo era cinza.
FERNANDA ALVES – Respiramos do lado da luz!
ERNESTO SAMPAIO – Tu és a Rosa do fogo incendiário, a Rosa nua de brancura, a Rosa branda e mística. Desta morada fazes o Paraíso e do seu tecto o céu em fogo.
FERNANDA ALVES – Sem o teu coração ardente o Inferno da abjecção não podia ser redimido.
ERNESTO SAMPAIO – Que será daquele que aqui ficar sem o outro?
FERNANDA ALVES – Nada temas. O que ficar tem o palco genial da Saudade, onde a Morte consente à Loucura a própria Vida. É o palco do teatro onde sempre me viste e onde sempre fui tua. Tantas para os outros e sempre a mesma para ti, que és a Loucura, o Delírio, o Ardor, a Poesia. Nunca chorarás de solidão. A solidão é impossível, amor.
ERNESTO SAMPAIO – É a Saudade que nos salva?
FERNANDA ALVES – Como salvou Pedro depois de perder Inês. Que ilusão feliz e magnífica o beija-mão real de Santa Clara! É a máscara do bonecreiro que liberta o ser do mundo; a máscara dá a liberdade de ser tudo e nada. Pelo teatro somos todo o mundo e ninguém; estamos presentes e somos ausentes. Só o teatro liberta e nos deixa amar.
ERNESTO SAMPAIO – Com a morte dum de nós passar-se-á do Amor à solidão. A morte é o momento em que nos roubam a ilusão da máscara. A máscara é a eternidade! Como me poderás amar sem a máscara?
FERNANDA ALVES – Nada receies, amor. A máscara nunca desaparece. Continuo a ser todas as mulheres que fui em palco; nada passa, tudo fica. Ainda hoje tenho em mim a força da grande imprecação diante das muralhas da cidade. Quanto mais me dou às máscaras, menos sou minha. Ser minha é ser o que me impede de ser tua. Quanto menos minha, mais tua, amor.
ERNESTO SAMPAIO – A máscara é a Poesia, o Oiro alquímico! O mundo é a História, o chumbo tóxico. Mas a Morte interrompe a Obra…
FERNANDA ALVES – Não! A Morte não interrompe! A Obra só rompe quando falta o Amor.
ERNESTO SAMPAIO – Aquele que ficar da combustão do nosso encontro, viverá então a Morte como uma operação do Amor.
FERNANDA ALVES – No momento em que um de nós se sentir só, morre. Morre, porque a Morte é uma operação do Amor e o Amor não suporta a solidão. Se um de nós sobreviver ao outro, como temes, só em Saudade poderá viver. Em solidão, morre. A Saudade é eterna; quem vive em Saudade nunca morre. Só morre o que passa da Saudade à solidão.
ERNESTO SAMPAIO – E a Morte será a fuga à solidão.
FERNANDA ALVES – A Morte será o sinal mesmo da impossibilidade de estar só. A Morte será o Amor.

(o Enxofre e o Mercúrio beijam-se ao rubro)


António Cândido Franco

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