quinta-feira, 30 de abril de 2015

Mito XXI: O verme egoísta



    “Eu batizo-vos em água (…) Ele batizar-vos-á com o fogo”
                                                                      Mt 3, 11

Abeira-te da berma do abismo.

Milénios de dor tornados pedra
Aguardam o eco do teu grito
No interior de longas galerias
Onde escorrem lágrimas ainda
Das pontas enceradas das estalactites.

Faz-te um com as paredes do abismo.
Suspende-te no espaço antes da queda.
Assume a forma sem textura
Das mudas perguntas que esvoaçam
Sob as abóbadas de cinza do crepúsculo.

E então a lava incandescente
Borbulhará no fundo dos poços profundíssimos
Que mergulham na noite e nos desertos
E nas areias que um dia resultaram
Do triturar de estátuas colossais,
Imagens de seres tão puros como deuses
Agora escravizados por fantasmas
Dos quais mal se conhecem as sombras repelentes
Avistadas às vezes por acaso
Quando olhamos segundo um certo ângulo
E surpreendemos por instantes
O fundo falso dos espelhos.

E a liberdade da lava irá correr
Nas artérias e nas veias dos gigantes
Acordando-os do sono em que, sonâmbulos,
Há longas eras percorrem labirintos
Que sem cessar os trazem de regresso
Ao ponto onde uma vez uma ilusão
Os fez pensar não serem mais que vermes.

(A ilusão criada pelos próprios vermes
Que assim conseguem, conforme desejaram,
Viver a vida dos gigantes.)

30/4/2015
                            Fernando Henrique de Passos

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Uma terra para viver em paz - um direito de todos



     A União Europeia inclina-se para a destruição dos barcos dos traficantes que trazem os perseguidos, os esfomeados, os fugitivos de terríveis guerras e de um terrorismo brutal, de gente sem esperança no seu país para lá continuar.

     Será que é assim, impedindo a essas pessoas a saída das suas terras ou recambiando-as para o país de origem (como os irão receber esses países?!), que se defende a liberdade de circulação dos cidadãos, a liberdade de escolher uma terra para viver em paz (apanágio da UE)? Isto não será fugir habilmente do problema metendo, como a avestruz, a cabeça debaixo da areia?

     A destruição dos barcos para que os fugitivos não sofram acidentes, ao não serem salvos pela marinha da Europa, tira um peso de consciência a esta UE? Foi para que estas gentes à beira do desespero, vindas de um Próximo Oriente e de uma África varridos pelo terror, não se salvassem que já tinham acabado com a operação "Mare Nostrum" (não queriam suportar as despesas que só a Itália suportava) e a substituíram pela "Tritão"?!

     Destruindo os barcos "da última esperança", a consciência destes governantes ficará mesmo tranquila? Dividir fraternalmente o que temos por esses pobres entre os pobres, não será a mais óbvia obrigação de uma verdadeira ética da humanidade?

     Porque lhes queremos recusar uma terra que não é mais nossa, europeus, do que deles africanos ou do Próximo Oriente?! O mundo é de todos, sejam cristãos, muçulmanos, budistas ou hinduístas. O mundo não é só daqueles que, por acaso, lá nasceram.

          Lisboa, 23 de Abril de 2015


                                                                                                 Teresa Ferrer Passos

quarta-feira, 22 de abril de 2015

De Praga a Bucareste






                                                                        a Franz Kafka e Mircea Eliade

Abençoado absurdo: ácido balsâmico
Que queima a pele, as vísceras, a alma,
Sublima o lixo, liberta galerias,
Limpa o olhar, prepara a atenção
Para o bailado das luzes principais,
Que o tédio seguro da razão não deixa ver.

Abençoado abismo do horror mais negro:
Os olhos treinados a perscrutar a escuridão
Vão detectar sem custo e com deleite
A luz discreta da noite do solstício,
A noite em que os céus se irão abrir,
A noite de S. João…

22/4/2015
                                            Fernando Henrique de Passos

terça-feira, 21 de abril de 2015

Doutrina para o homem na sua dimensão global


João com a sua humilde pele de camelo a batizar Jesus, o Salvador
    
   «João Batista lançou os alicerces da doutrina de Jesus que se poderia sintetizar no célebre Sermão da Montanha. Uma doutrina mística para o homem na sua dimensão global, uma doutrina para ser levada até aos confins da terra, até às periferias das famílias, das cidades e das nações.

 Nenhum dos Doze discípulos escolhidos por Jesus receberia tantos louvores Seus como João Batista, esse que era «a voz que clama no deserto», como se quis ele próprio definir, um dia. Nenhum dos Doze, Jesus comparou a Elias, o profeta com mais prestígio na Palestina. Nenhum, Jesus escutou, seguiu e venerou como a João Batista. Nenhum, foi tão chorado por Jesus, na hora em que recebeu a notícia da sua prisão e, poucos meses depois, da sua condenação à morte. 

   Uma amizade única nasceu entre Jesus e o mais simples e sábio dos seus discípulos. O maior "nascido de mulher", aquele que era "muito mais que um profeta", "o profeta do Altíssimo". Aqui está João Batista, a batizar no rio Jordão e a pregar o arrependimento para que todos se salvassem da morte e tivessem a vida eterna.» 

                                                      Teresa Ferrer Passos* 

* Excerto final da palestra «João Batista, o amigo predileto de Jesus? - Uma amizade única» proferida pela autora, em 20 de Abril de 2015, no Círculo de Espiritualidade e Cultura, em Lisboa.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

A última poesia de Camilo Pessanha


Penetro no centro oco do mistério.

Sinto no escuro a contracção de nervos
Mas não sei se são os meus nervos que se crispam
Ou as raízes húmidas da gruta
Pois já a custo me distingo dos muros que me cercam.

Procuro o réptil responsável,
O longilíneo primevo encantador,
O Rei das Trevas, senhor da ilusão
Que me fez prisioneiro de mim mesmo.

Escuto o longínquo gotejar do tempo
Disfarçado de passos femininos
Que se aproximam por longas galerias.

Se foi aqui que tudo começou,
Será também aqui o desenlace:

Dirijo-me ao encontro da serpente.

16/4/2015
                  Fernando Henrique de Passos

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Horizonte em Deus


Perseguição religiosa e oração

«O espírito de oração é a capacidade de caminhar em contacto com Deus, através de tudo na vida. É a consciência interna de que Deus está comigo – agora, aqui, nisto, sempre.

É uma consciência da presença contínua de Deus.

É o meu diálogo com o Deus vivo, que vive no meu mundo, em Espírito e Pensamento.

O espírito orante vê Deus em todo o lado.

O espírito orante fala com Deus em todo o lado.»

        Joan Chittister, O Sopro da Vida Interior, 2015 (excerto)

domingo, 12 de abril de 2015

Não, não está no sepulcro...

«Maria»! disse Jesus.
«Maria de Magdala foi dar a nova aos discípulos» (Jo 20, 16 e 18)

«Em Jesus Cristo o ser humano vive até ao máximo todas as suas potencialidades ontológicas. Verdadeiramente o ser humano está feito para Deus. Neste sentido, podemos afirmar que Cristo surge como o intérprete supremo da existência humana.»

«Só podemos verdadeiramente falar do cristianismo e do Mistério de Deus se entendermos Deus e o ser humano de uma maneira encarnativa e relacional. Falar de Deus hoje é, portanto, falar das suas entranhas e essas são entranhas de misericórdia»

«Parece-me que a celebração deste tempo privilegiado não pode ficar na contemplação do Ressuscitado, mas deve implicar o testemunho dos frutos da Ressurreição, e esses não podem deixar de passar pela celebração e testemunho das "entranhas de misericórdia" do nosso Deus, ou seja pelo testemunho desse amor que nos faz querer, procurar e promover o bem dos outros, de todos os outros, preferencialmente daqueles que se encontram marginalizados em tantas periferias».

                  Juan Ambrosio (excertos de "Tempo Pascal: Celebração das 'entranhas' de Deus" in Internet, Pastoral da Cultura)

sábado, 11 de abril de 2015

Abre-te Sésamo





A voraz vertigem da verdade:
Os lábios entreabertos femininos
Sorvem as cascatas caudalosas
Que caem desde o sol
Na cega luz dos paradoxos.

Filósofos nocturnos enlouquecem
Perante o espanto das janelas
Abertas sobre céus sem fundo
Cansados da insónia dos milénios
Esperando em vão a vinda de astronautas sábios
Que não deixem pegadas sobre a Lua
Quando ela se espreguiça como gata
Espreitando sombras florentinas
No cimo de torres impossíveis
Que equilibram como por magia
A malícia das leis dos telescópios
E a ternura das penas dos poetas.

Trezentos e sessenta graus de ignorância:
Amplitude côncava de espelhos
Tão sólidos como ângulos sem espaço
No delírio dos árabes algébricos
Perplexos ao saberem que a chave procurada
Deve ser dita sem palavras.

7/4/2015
                        Fernando Henrique de Passos

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Génesis

Foz do rio Lima

Quando arrancados fomos um do outro
Tu sangraste da ferida em ti deixada
Pelo rasgar de um ser em duas partes
E sangraste ainda a cada lua nova
E assim foi durante muitos anos.

Desde que por fim nos encontrámos
Tentamos voltar a ser um só:
Ferida na ferida, dor na dor
E a inquieta alegria de sentirmos
Que o borbotar da antiga plenitude
É como nascente cada vez mais próxima
Enquanto deslizamos rumo à foz.

30/3/2015

                   Fernando Henrique de Passos

terça-feira, 7 de abril de 2015

Terra dos homens


Mistura de gelo e fogo e lixo e diamantes
Suspensa no espaço entre as estrelas.

Fervilhar de lama alucinada.

Ânsia dos sonhos das formigas
Nascidas dos céus e dos nocturnos
Ribombares das nuvens de algodão
Manipuladas por enfermeiras cósmicas
Espreitando pelas grades das janelas
Do lado de fora no jardim
Para lá das luzes das incubadoras
E dos relâmpagos dos carris eléctricos
Deslizando no agulhar da noite
Da cidade à espera da chegada
Das notícias azuis de amanheceres
Lancinantes como um meio-dia
Com excesso de sol no arvoredo
Que abriga a circularidade da rotina
Dos anões da vasta floresta
Onde branca é a neve e o alcatrão
Mais puro que o asfalto das montanhas
Onde os profetas clamam e proclamam
A vinda final do mensageiro
Que dirá da chave ignorada
A hora e o local do seu encontro.

(E possa o engenho dos jograis
Decifrar o código dos deuses.)

21/3/2015

                Fernando Henrique de Passos

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Manoel de Oliveira, a memória começou...

O jovem Manoel de Oliveira em torno dos rolos filmados

A suave morte de Manoel de Oliveira aos 106 anos de idade.

Uma idade em que o trabalho era, neste homem excecional, uma constante fonte de inspiração para viver, para se relacionar com o outro e com as maiores encruzilhadas humanas.

Manoel de Oliveira, o cineasta que escreveu todo um cinema português com as letras do universal. Uma inesperada criatividade, um rumo certo e irreprimível contra a corrente, a ignorar as críticas à sua grande aventura de ser ele próprio.

Uma incessante corrida contra o tempo e as modas, contra os pontos mais discutíveis do cinema atual. Uma imensa coragem moral a afirmar-se contra a morte anunciada de um cinema a vender-se, muitas vezes, por dinheiro.

Com o estigma daquilo que não se corrompe, que não se desgasta, os seus filmes foram e continuarão a ser uma lufada de ar fresco e de vida, ainda ao longo de muitas gerações. Assim o desejamos. Assim o esperamos. 

2 de Abril de 2015

                                                   Teresa Ferrer Passos