quinta-feira, 30 de abril de 2015

Mito XXI: O verme egoísta



    “Eu batizo-vos em água (…) Ele batizar-vos-á com o fogo”
                                                                      Mt 3, 11

Abeira-te da berma do abismo.

Milénios de dor tornados pedra
Aguardam o eco do teu grito
No interior de longas galerias
Onde escorrem lágrimas ainda
Das pontas enceradas das estalactites.

Faz-te um com as paredes do abismo.
Suspende-te no espaço antes da queda.
Assume a forma sem textura
Das mudas perguntas que esvoaçam
Sob as abóbadas de cinza do crepúsculo.

E então a lava incandescente
Borbulhará no fundo dos poços profundíssimos
Que mergulham na noite e nos desertos
E nas areias que um dia resultaram
Do triturar de estátuas colossais,
Imagens de seres tão puros como deuses
Agora escravizados por fantasmas
Dos quais mal se conhecem as sombras repelentes
Avistadas às vezes por acaso
Quando olhamos segundo um certo ângulo
E surpreendemos por instantes
O fundo falso dos espelhos.

E a liberdade da lava irá correr
Nas artérias e nas veias dos gigantes
Acordando-os do sono em que, sonâmbulos,
Há longas eras percorrem labirintos
Que sem cessar os trazem de regresso
Ao ponto onde uma vez uma ilusão
Os fez pensar não serem mais que vermes.

(A ilusão criada pelos próprios vermes
Que assim conseguem, conforme desejaram,
Viver a vida dos gigantes.)

30/4/2015
                            Fernando Henrique de Passos

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