quinta-feira, 12 de novembro de 2015

A cartografia da verdade

Esquerda ou Direita? - A Verdade não pode caber apenas em metade da realidade.


Agora que se formam barricadas, deixem-me falar da terra de ninguém. De um e de outro lado as vozes são tão certas que quem as ouve, de um e de outro lado, só pode por seu lado ter uma só certeza: de lado algum se ouve a inteireza plena da verdade.

É como se a verdade fosse uma superfície curva – pensemos por exemplo no globo terrestre – e cada qual procurasse representar os pormenores dessa superfície curva em cima de uma folha de papel. (E não há nada menos curvo do que a planura de uma folha de papel.)

Se apenas quisermos representar na folha de papel uma porção muito pequena do globo terrestre, então podemos fazê-lo, e fá-lo-emos apenas com impercetíveis desvios em relação à realidade. Mas quanto maior for a área do globo terrestre que pretendermos abarcar, então tanto maiores serão as incorreções do nosso mapa plano.

É o que acontece aos que estão nas barricadas. E quem está entre ambos, apenas pode adivinhar a forma da verdade juntando pequenas porções – de um e de outro lado − de tudo aquilo que lhe vai chegando aos ouvidos.

11/11/2015

Fernando Henrique de Passos

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Da fotossíntese à respiração


Penso melhor ao pé das árvores:
as raízes trazem-me os sonhos
da terra e das sementes;
as folhas bêbedas de luz
contam-me os segredos das estrelas;
os troncos verticais são mais direitos,
na sua perfeita imperfeição,
que as retas dos geômetras;
as flores têm toda a sabedoria
do tempo e da mulher;
e os frutos são de uma certeza tão límpida e desperta
que envergonha o sonolento teorema dos sólidos perfeitos.

Penso melhor ao pé das árvores,
onde quase não separo o pensamento
do suave tumulto dos átomos gasosos
transportando até aos meus pulmões
o verde aroma fresco
do bosque que amanhece.

15/10/2015

Fernando Henrique de Passos

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Do Gênesis ao apocalipse


O que é realmente importante na Bíblia: só o princípio e o fim? Poderia parecer, de facto, que a lenda de Adão e Eva explica como o Tempo se separou da Eternidade, enquanto o Apocalipse explica como voltará o Tempo a ser absorvido pela Eternidade, de modo que tudo o que está “no meio” seriam apenas acidentes, os acidentes próprios do Tempo. Mas dá-se o caso de a Eternidade participar ativamente em todos esses acidentes do Tempo, com vista ao desenlace final. Daí a importância de TODA a Bíblia, com especialíssimo destaque para os Evangelhos, que narram a descida da própria Eternidade ao seio do Tempo.

4/11/2015

Fernando Henrique de Passos

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Rosas de Santa Teresinha



O RESGATE DE SANTA TERESINHA




O poema que ontem compusemos
Não foi escrito com tinta nem papel:
Escrevemo-lo no dia que acontece
Como quem reza baixinho alguma prece.

O poema que ontem compusemos
Não foi escrito com tinta nem papel:
Foi escrito em nós por quem jamais se esquece
De dar alento à luz sempre que a luz esmorece.

O poema que ontem compusemos
Não foi escrito com tinta nem papel:
Nasceu como fruto da memória
Do dia em que te dei um certo anel…


5/11/2015

                  Fernando Henrique de Passos




A MORTE DA ROSEIRA 




O dia era cinza nas nuvens disformes
a agitarem as gotas de chuva sobre a roseira,
a pender de rosas de Santa Teresa do Menino Jesus.

De súbito, agitado senti o coração. Que acontecia?
Cheguei à janela. Vi três jardineiros
a chegarem junto da bela roseira.
Levavam a máquina de cortar e as mãos
com luvas de proteção. A camioneta ao lado,
com as bermas descaídas esperava a roseira
a respirar vida.
O som da máquina trovejou. Os ramos tombaram
nas mãos inclementes.
As rosas choravam as gotas perdidas da chuva piedosa.
Pétalas sepultavam-se no relvado vermelho de revolta.
Os troncos abraçavam ainda as rosas.
Estavam a ser sepultadas na estupidez
de ordens superiores, dos grandes senhores...
Corri a dizer-te. E tu gritaste. Parem!
E nós, prostrados, chorámos
abraçados. Depois, a máquina emudeceu.
Voltamos à janela. Havia ainda uns fracos troncos.
Com rosas!
Os três jardineiros tinham desaparecido.
E chorámos de novo. De alegria. 

5 de Novembro de 2015 (no 22º aniversário do nosso noivado)

                                        Teresa Ferrer Passos

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Uma chuva de rosas para a Terra...



«Ó coração de Jesus, tesouro de ternura
Tu és a minha dita, a minha única esperança,
Tu que soubeste cativar a minha juventude
Fica ao pé de mim até à última tarde.
Senhor, só a Ti dei a minha vida
E conheces bem todos os meus desejos
É na tua bondade sempre infinita
Que desejo perder-me, ó Coração de Jesus!»

1895
               Santa Teresa do Menino Jesus
         (Do poema «Ao Sagrado Coração de Jesus» in Obras Completas, p.735)



segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A vida não passará...

A vida chama por nós,
como uma flor viva.
Se o nascimento é a vida a cobrir os novos seres,
a infância é todo um choro a sorrir,
um cântico à vida nova.

Porém, os velhos olham a vida como um tesouro perdido.
Sabem que a morte não lhes dará outra vez a vida,
igual a esta. Que incógnita!

Esquecem que uma outra vida, não efémera como esta, sempre à beira de findar, lhes está prometida se o Amor tiver sido, em todo o nosso caminhar, um farol sempre aceso, a brilhar.

Dia de Finados (2 de Novembro)
                                                              Teresa Ferrer Passos
  

domingo, 1 de novembro de 2015

S. João Batista no Dia de Todos-os-Santos


Logo que João Batista sabia da presença de Jesus nas proximidades, mandava os seus ouvintes ir ter com Ele, Ele é que era o Messias. E avisava que ele, João, nada mais era do que uma voz a «clamar no deserto» para que os que viviam no erro se arrependessem. Depois, seguirem o Messias. Ouvirem e receberem as palavras de Jesus e fazerem-nas suas. E que oportunidade! Ele estava ali tão perto, tão próximo de cada um, ali mesmo.

A Sua chegada parecia a João marcar o fim do seu trabalho preparatório, mas Jesus não pensava assim. Se tudo se devia cumprir como o Espírito Santo o revelara a seu pai Zacarias, Jesus tinha em grande apreço pregar ao lado do Seu Mensageiro, do Seu primeiro apóstolo (= enviado). Um, numa aldeia, outro em outra. 

Porém, a humildade de João levava-o a insistir junto do seu auditório: «Eu batizo em água; mas, no meio de vós, encontra-se (…) Aquele que vem depois de mim; e eu não sou digno de desatar a correia da Sua sandália»(1).

É nessas horas do princípio de Jesus ali, ali tão perto, que João proclama à multidão: «Este é aquele de Quem eu disse: “Depois de mim, virá Alguém que passou à minha frente, porque era antes de mim”»(2).

Depois, João Batista dá o testemunho maior sobre Jesus: «Vi o Espírito Santo descer do Céu como uma pomba e permanecer sobre Ele»(3).


                                                               Teresa Ferrer Passos

(1) Jo 1, 26.
(2) Jo 1, 29-30.
(3) Jo 1, 32.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Amor



Que palavra redonda e delicada,
Que fruto doce e colorido,
Tão diferente do fruto proibido
Como das trevas difere a madrugada.

Que amanhecer de cores entre a verdura,
Que estremecer de folhas tão secretas
Que escaparam à monda dos poetas
E te ornamentam agora a formusura.

Que luzes fantásticas de Outono,
Degraus de sol da larga escadaria
Da qual foi dito que um rei a subiria
E que Eros-Rei sobe hoje até ao trono!

28/10/2015

                           Fernando Henrique de Passos


quinta-feira, 22 de outubro de 2015

O polémico Crucifixo de Germaine Richier

Altar-mór da igreja de  Plateau d'Assay, França (1951)

«Quando o amor cresce em ti, a beleza faz o mesmo.

Porque o amor é a beleza da alma».

                                                   Santo Agostinho (séc.IV)

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Duas propostas inovadoras no Sínodo dos Bispos sobre a família


Cardeal Wilfrid Napier de Durban, África do Sul: 
«O acompanhamento “pós-matrimonial”, em particular nos primeiros anos de casamento»
Cardeal Lluís Martínez Sistach de Barcelona, Espanha: 
«Qualquer separação tem “muitas consequências negativas». «É muito importante a preparação “remota” para o casamento, desde a adolescência, bem como a preparação “próxima e imediata”, que muitas vezes se confronta com a falta de “formação religiosa” e o afastamento da Igreja, por parte dos noivos».

20/Outubro/2015

domingo, 18 de outubro de 2015

RECONHECIDOS SANTOS: O CASAL ZÉLIE E LOUIS MARTIN


O Papa Francisco canonizou hoje, no Vaticano, os pais de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, Louis Martin e Zélie Guérin Martin. Este casal, modelo do amor conjugal, tal como Jesus o enunciou claramente, foi o primeiro casal a ser canonizado em conjunto, com exceção dos casos de martírio.

Sua Santidade declarou que os novos santos "viveram o serviço cristão na família, construindo dia após dia um ambiente cheio de fé e amor; e, neste clima, germinaram as vocações das filhas, nomeadamente a de Santa Teresinha do Menino Jesus".

Esta canonização homenageia o casal exemplar. Um amor a viver por Louis Martin para além da morte de Zélie Martin. A cerimónia aconteceu durante o Sínodo dos Bispos sobre a família, que decorre até ao próximo dia 25, e no Dia Mundial das Missões, de que Santa Teresa do Menino Jesus é padroeira.

Teresa do Menino Jesus com o pai

Excertos da monografia de Teresa Ferrer Passos intitulada
Santa Teresa do Menino Jesus e a Força dos seus Pequenos Caminhos,
Edições Carmelo, 2013, pp. 51, 67 e 72:

«Atormentada pela doença, a procura das memórias maravilhosas da sua infância, acentua-se. Escrevia no poema "O Cântico de Celina" datado de 1895: "Oh como eu amo a recordação / Dos dias abençoados da minha infância" (Santa Teresa do Menino Jesus, Obras Completas, p.710). (...)»

«O olhar, a voz, o perdão, e, finalmente, o repouso, a decorrer de tanto ter sido amado [Jesus] na fidelidade e na confiança de Teresa. Eis o amor esponsal a atingir a sacralidade, a chegar ao Céu, a subir com os braços de Jesus às moradas divinas. Este amor superior que Teresa vive na mais mística e na mais pura das paixões pode encontrar os seus fundamentos no próprio casal Martin − essa mãe carinhosa e tão cedo morta, e, esse pai bom, sempre a condescender e sempre sofredor até à prolongada doença que o conduziria à morte.(...)»

«A memória dos anos que se seguiram à morte da mãe tinham ainda viva a comunhão carnal com a mater originalis, essa mãe que numa das suas cartas datada de 4 de Março de 1877, não pára de falar daquela filhinha de respostas inteligentes e com "um olhar" em que lhe notava "qualquer coisa de celestial" que "a encantava" (Obras Completas, p.86). Ao lado das irmãs, estava a figura amada do pai que constitui, também ele, mais um resquício da memória da mãe. Mas, a afectividade inexcedível do pai com Teresa, "a sua rainhazinha" avivava sempre a imagem da maternal imagem presente na senhora Zélia Martin.(...)»

sábado, 17 de outubro de 2015

Porque está a falhar o cristianismo?


Capela de S. Lourenço em Viana do Castelo

O cristianismo está a perder vitalidade de uma maneira evidente para todos. O que tinha surgido há vinte séculos como uma força libertadora de intensidade nunca vista, foi perdendo ímpeto até que hoje, pelo menos na Europa, parece à beira dos últimos estertores. Como explicar este fenómeno?

Decidi levar a cabo uma análise de um esquematismo extremo, para evitar ter de chamar uma equipa de historiadores, filósofos e teólogos, os quais, de resto, iriam obscurecer por completo a ideia simples que quero transmitir: quando eles tivessem acabado o seu trabalho, teriam conseguido montar uma rede quase inextrincável de nomes, factos e ideias, estendendo-se no tempo ao longo de cerca de dois mil anos, ocupando geograficamente todo o globo terrestre, e envolvendo milhares de pessoas, ou talvez milhões, ou talvez milhares de milhões.

Eu pretendo fazer uma coisa ao mesmo tempo muito mais modesta e muito mais ambiciosa: identificar uma única direção − dominante e intemporal − no meio do caótico emaranhado do fluxo histórico das correntes de ideias, subcorrentes, subsubcorrentes, etc.

Não quero ser exato. Quero precisamente o oposto da precisão. Claramente anti cartesiano, fujo das ideias claras e distintas. Afasto-me imaginariamente para um ponto suficientemente distante do planeta Terra. Deixo de ver pormenores, vejo apenas manchas coloridas, com gradações contínuas de cor e portanto sem fronteiras a separá-las.

Recuando ao tempo de Jesus, localizo mesmo assim neste mapa de cores mal demarcadas, duas manchas relativamente bem definidas, dois polos em redor dos quais de organizam todas as linhas de força:


OCIDENTE  --  ORIENTE

Há um fervilhar de ideias em torno de cada um destes polos. Tanto um como outro nascem e crescem num caldo de cultura de ideias míticas/religiosas, diferentes num e noutro caso, ambas irrelevantes para os presentes propósitos. O polo ocidental é uma mancha que alastra a partir da Grécia por volta de meados do último milénio antes da era de Cristo. Estamos habituados a chamar “milagre grego” ao que aí aconteceu nessa altura. Conheço muito pior o polo oriental. Para ter dele uma representação histórico-geográfica, situo a sua origem na Índia, nos inícios do mesmo I milénio a.C., quando os Upanishad deixam o solo firme da religião védica e se embrenham também pelos desfiladeiros da filosofia [1].

Para não faltar ao prometido esquematismo, aqui estão resumidamente as características destes dois polos:

OCIDENTE:
RAZÃO
ATENÇÃO AO VISÍVEL
ou seja
ATENÇÃO AO EXTERIOR
ou seja
ATENÇÃO À MATÉRIA

ORIENTE:
INTUIÇÃO
ATENÇÃO AO INVISÍVEL
ou seja
ATENÇÃO AO INTERIOR
ou seja
ATENÇÃO AO ESPÍRITO

Deus encarna em Jesus Cristo num ponto geográfico e num instante histórico que são ambos ponto de encontro e confluência dos eflúvios orientais e ocidentais. A minha tese é a de que isto não aconteceu por acaso e que a Redenção deveria envolver a síntese destas duas grandes tendências. E os primeiros tempos do cristianismo, de facto, pareciam ir nessa direção.

Pareciam ir nessa direção, mas a síntese ainda não estava feita, e nunca chegou a ser feita, porque houve cristãos, homens de carne e osso, tão falíveis como quaisquer outros, que decidiram, em vez de procurar a quase impossível união dos dois polos, suprimir pura e simplesmente um deles, o polo oriental.

Desçamos um pouco do abstrato ao concreto: os factos a que me refiro no parágrafo anterior consistem na condenação das correntes gnósticas como heréticas e na concomitante declaração como apócrifos de vários dos Evangelhos que nessa altura circulavam. O gnosticismo era a versão oriental do cristianismo, com a superlativação do espírito e a liminar recusa da matéria, vista como única fonte de todos os males e como incapaz de produzir algo de bom.

Na lógica clássica, a negação da negação é equivalente à afirmação. Poder-se-ia então pensar que, nesta luta interna do cristianismo, a corrente vencedora, ao recusar a recusa da matéria, tomava o partido da matéria. No entanto, a lógica real é mais subtil do que a lógica formal. Assim, ao longo dos subsequentes séculos, o cristianismo teve sempre entre os seus mais dignos representantes, homens e mulheres de enorme espiritualidade.

Mas se isto é verdade para todos os santos que deixaram o seu nome na história, e também para os muitos mais que permanecerão para sempre desconhecidos, não o é contudo para a maioria dos fiéis. Recusando a síntese quase impossível entre a recusa da matéria e a aceitação da matéria, e preferindo recusar a recusa da matéria, o cristianismo falhou em dar o salto em direção à Redenção, e, sem dar por isso, abriu as portas ao materialismo. As consequências estão agora à nossa vista.

9/10/2015

                                        Fernando Henrique de Passos


[1] Deixo aqui claro que vejo uma antinomia (quase) irreconciliável entre Religião e Filosofia: a primeira oferece a consolação da adoração; a segunda, a inquietação da busca. Talvez seja apenas mais uma instância da dicotomia feminino/masculino: a mulher procura amparo, o homem procura aventura. (Isto no tempo dos trogloditas, claro; hoje todos nós sabemos que já não é assim.) Na Índia, a tensão da Filosofia contaminou a paz da Religião; penso que o gnosticismo cristão herdou essa característica através dos seus “genes” orientais. A questão pode pôr-se assim: o fim último de um mistério é que o adorem ou que o desvendem? Talvez a feição mais espiritual da filosofia oriental tenha facilitado a sua aproximação à religião. Mas também é verdade que há aproximações desse tipo no cristianismo, e não só aproximações ao platonismo – muito naturais por este ser a principal exceção espiritual ao materialismo da filosofia grega – mas ao próprio aristotelismo, como é bem sabido. Mas esta observação só confirma o que já estava implícito desde o princípio deste texto: quanto mais queremos olhar a história de perto, tanto mais confusa e “misturada” ela se nos apresenta.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Ars Magna

( convoco, para a Musa minha, o Ás de Paus )

Alguém vibra junto à porta
Na alameda das olaias.
É d' Amor. Será a morta?
É do mel. E são as Maias.

Alguém vibra e alguém sente,
No meu quarto, alguém delira.
E comenta, quando mente,
E ela tange a sua Lira.

Alguém vibra junto ao Céu,
Entremez d' Amor e trigo.
É qual Lisa, digo eu,
É Camões, e está comigo.

Mas por fim, alguém serena,
Verde campo, eu vejo a tal:
A pastora toca a avena
E eu canto a Pastoral.

Lisboa, 09/ 05 / 2006

ADVENIAT REGNUM TUUM

Paulo Jorge Brito e Abreu

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A propósito de um novo romance...

"UM CIENTISTA E UMA FOLHA DE PAPEL EM BRANCO"



Aqui ofereceremos, cada dia, até ao seu lançamento, uma passagem de Um Cientista e uma Folha de Papel em Branco de Teresa Ferrer Passos. Trata-se de um romance sobre a sociedade materialista ocidental contemporânea - «fantástica viagem pelo mundo do irreal». A narrativa desdobra-se em duas partes: a 1ª, centra-se no cientista confrontado com a sua ambição e os enigmas da sua mente toda-poderosa; a 2ª, sobre a angústia do cientista perante a matéria, a ideia de Deus e o enigma da sua Origem.
    




O lançamento deste livro será no próximo dia 10 de Outubro, na Fnac do C. C. Colombo, em Lisboa, pelas 18h30. A Apresentação da obra está a cargo do Professor António Cândido Franco da Universidade de Évora.




«E duvida do sentido de todas as coisas. Ao mesmo tempo, sente no seu coração uma grande certeza: a sua espera remonta ao princípio do mundo e irá prolongar-se até à própria eternidade.»

«Mas, de súbito, teme a verdade como uma tragédia. O olhar imobiliza-o. As mãos pousam sobre a folha de papel e o lápis rola sobre a mesa. A respiração é ofegante. Depois, lenta. Demasiado lenta. O pensamento faz um silêncio.»

«Taoj sente perderem-se lentamente os rumos interrompidos das suas reflexões, essas reflexões que orientam e equilibram, mas também desesperam. (...) No seu olhar de dor adormece todas as noites»


À entrada do seu escritório

«Na realidade dos possíveis, vê a folha de papel em branco com os olhos apagando-se na palidez do impossível (...). 
Que caminhada de renúncia se inscreve no seu horizonte. Que emoção ansiosa a vergar-se à serenidade das realidades profundas. Que oculto sentimento de resistência a mantê-lo numa expectativa de que qualquer coisa vai acontecer».

«Com que agilidade eu pensava e com que sentido crítico estudava e, afinal, onde está a minha cabeça? não está espelhada na folha de papel em branco... onde estou eu se perdi a minha cabeça pensante? quando a perdi? há quanto tempo? perdi-me dela ou foi ela que se perdeu de mim?»

«Mas o que é mais estranho em tudo isto é que, ao fim de tantos anos, sente, pela primeira vez, que deseja alguma coisa com determinação, e, até perscruta em si uma espera que lhe parece não poder ter fim.»


A escrever no computador

«Silenciando o medo, Taoj sente que algo muda no seu modo de interpretar os possíveis objetivos daquele estranho computador. Como por encanto, Taoj refugia-se mais na caverna fragmentada de si mesmo, como se uma grande calma a inventasse»

«Então, Taoj sente-se uma raiz de felicidade-em-si porque nenhuma dúvida vive nele; as redes da Internet seriam o rumo certo, mesmo que um grande sofrimento, uma forte dor, uma inevitável derrota, o esperasse na procura, na procura sem limites. E que rapidez espantosa para qualquer comunicação com pessoas, objetos, e, até com todos os mundos, que desconhecia»

«Sentados, ao lado de um pequeno rochedo batido por ondas, a desfazerem-se em bolhas de espuma lilás ou roxa (não se discerne com clareza), dois homens parecem conversar com vivacidade. Taoj reconhece o perfil de um deles. Sente que o reconhece. Já o viu em alguma galeria de arte, na contracapa de um livro ou numa desconhecida rua de grande cidade»

Com António Cândido Franco e José Augusto Mourão
na Livraria Escolar Editora, em 2003

«Nesse instante, Taoj escuta a voz de Ulisses. Depois, parece ouvir de novo aquela voz de mulher ténue e distante tão distante e a sussurrar palavras que ele procura esquecer porque é, claramente, uma voz que o engana, que só pode existir em sonho, não, não pode ser verdadeira».

«O mistério como que dilui a espera de Taoj, perturbado demais para a pressentir. Sente uma náusea de susto. Não há imagens para além da aparência. Nem há vida para além do verbo. Um silêncio estende-se como um céu sem astros»

«Pressente à distância, fogos acesos e sem chamas, melodias divinas e a vibrar toda a simplicidade de um leve roçar de vida. Como podem fogos de vibrações sonoras devorar toda a procura, sem serem vistos pelo corpo acéfalo de Taoj e mesmo assim extenuado de sonhos?»


Com João Carlos Raposo Nunes na livraria Uni Verso
em Setúbal, em 1999, no lançamento de Álbum de Amor.

« − A liberdade é a água que corre em todos os recônditos lugares do teu corpo − escuta Taoj, com nitidez.

Quem diz estas palavras? (...) Assustado, o seu coração palpita com mais impetuosidade. Depois, o seu inconsciente extrai das nuvens negras e densas da memória o nome do filósofo grego, que desoculta no canto superior esquerdo do ecrã do computador»


«Entre os sábios gregos, muitos amigos tornaram-se meus adversários e tive de separar-me daqueles a quem a amizade me ligava mais. Seduzia-me descobrir toda a verdade sobre as origens do mundo, essa maravilha que me cercava e de que eu próprio fazia parte. Procurar a verdade sem falsidades, sem desvios artificiosos. Estudar a natureza na sua realidade pura, sem sofismas, sem vantagens fúteis na sua verdade íntima e a transparecer de beleza.»

«Como é espantosa a matéria, sempre a querer valorizar-se aos nossos olhos. A matéria constrói-se a si própria na ânsia de se regenerar até ao seu limite. Apetece-me dizer infinito, mas não gosto da palavra infinito, porque, quem pode entender essa palavra?»


Em 2004, na sua antiga casa de S. Braz de Alportel 

«Procurar, procurar, torna-se-lhe um caminho agora irreversível. O verdadeiro sentido da sua vida, conforme uma multiplicidade de sonhos lhe desocultara numa só noite, a parecer-se com os segredos do universo.»

«Nunca enviou um sinal,uma simples mensagem, um breve aviso. Inundado de caos, Alfa simula um real transcendente, em busca de um santuário consagrado ao deus da luz imperecível.

"A solidão, só a solidão me acompanha"

"E se pudesses dizê-lo a quem te criou?"»


No Jardim da Verbena, S. Brás de Alportel (2004)

«Uma espantosa coragem de avançar está inscrita em cada um daqueles irreverentes absurdos que esperam nascer, talvez um dia, e brilhar até ao infinito de todos os espaços ainda por criar.
Mais do que tudo, esperam romper todo o mundo precário e irreal em que Alfa vegeta perdido de qualquer referência ou vislumbre de direção.»

«Alfa não pode confiar senão no seu mundo pequenino, estreito, vadio e sem emoção. Nada o faria acreditar no valor de confiar e, muito menos, confiar nas palavras carregadas com o peso de uma mentira inglória!»



Antes de pegar na sua "enxada" diária em 21 de Agosto de 2015
«O silêncio intromete-se num monólogo inconsciente. Lúcido e como se estivesse alucinado, Alfa questiona-se. Na angústia, enrola-se bem no fundo de si e adormece. É uma letargia sem horas. E espera que qualquer coisa aconteça.»

«Múltiplas imagens perturbam Alfa. Tudo é semelhantes às ruas entrecruzadas de uma qualquer cidade infernal, ensurdecida pelos ruídos de uma tecnologia que rejeitou a ciência e invadiu os corpos humanos. Corpos amolgados pelo bairros de lata e os uivos das mulheres agredidas e a criança violentada como se fosse o lodo dos pântanos.»

«Adormecido numa imobilidade que o perdia e anulava, nenhuma partícula podia sobreviver no seu mundo de engano. Uma mentira colossal estava dentro das suas portas»

Junto ao castelo de Ourém, em 2002

«Acho que a matéria quer ir sempre mais longe, mais além, numa criação repleta de imaginosas direções, em mutações imparáveis e desvios alienados de mim.»


«Alfa está a perder-se deste estranho e vastíssimo universo que cada vez mais se afasta do seu pequeno mundo. As partículas divertindo-se com o espaço e o tempo e as outras forças novas alienam-se, encobrem-se e fazem nascer embriões de fantásticas criaturas.»

«Alfa está frente à aventura do impossível.
 Desse impossível donde irrompe a matéria em átomos e mais átomos que se atraem ou se repudiam, que se amam ou se odeiam, que edificam mundos novos ou recusam a sua construção.
 No caos absoluto da matéria vão-se erguendo biliões de absurdos. A Esperança é um deles.»


Excertos do romance de Teresa Ferrer Passos, "Um Cientista e uma Folha de Papel em Branco", Chiado Editora, Lisboa, 2015, pp. 15, 17, 19, 24, 27, 35, 43, 48, 58, 67, 80, 92, 107, 123, 144, 152, 180, 211, 229, 256, 269, 280, 357, 394, 397.



Na Biblioteca Municipal da Amadora, ao lado de
um retrato de Fernando Pessoa, em 2008




quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A última pergunta




Estou acordado dentro dos Teus sonhos
Ou a sonhar no seio do Teu dia?
É indiferente, Senhor dos Mil Semblantes,
Agora que a Hora principia…

                    3/9/2015
                       Fernando Henrique de Passos

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Uma Europa de valores cristãos apagados...



Os valores cristãos já não são os valores com que a maioria dos europeus vive. Os valores cristãos divulgados, em primeiro lugar, pelos Evangelhos, têm sido, e continuam a ser, vilipendiados por um oportunismo desenfreado de gerações em que só o hedonismo, até ao hedonismo abjecto, fala alto e é aplaudido, como se não houvesse mais nada pelo qual valesse a pena lutar e a que valesse a pena aderir.

Daí, as manifestações reticentes, as posições equívocas, as tomadas de posição obstrutivas, os medos cobardes, os silêncios inesperados, da sociedade e de muitos políticos europeus, perante as vagas de fugitivos aos horrores de guerras no Norte de África e no Próximo Oriente.

Não serão estes milhares de fugitivos que nos estão a alertar, agora, para o falso mundo humano em que caímos e em que continuamos caídos? Um mundo humano em que falta, pelo menos, uma virtude capital, a Fraternidade com o pobre desconhecido que nos procura. Esse, que está despojado de todo o bem-estar material pelo qual os europeus continuam a respirar...

2 de Setembro de 2015
                                                                                     Teresa Ferrer Passos

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Deus

Miguel Trigueiros

Atei os meus braços com a tua Lei, Senhor,
E nunca os meus braços chegaram tão alto!
Ceguei os meus olhos com a tua Luz, Senhor,
E nunca os meus olhos viram tão longe!
Só desde que Te dei a minha alma, Senhor,
Ela é verdadeiramente minha.

Por isso, hei-de subir até à Vida,
Despedaçando o corpo na subida.
Por isso, hei-de gritar, de porta em porta,
A mentira das noites sem estrelas;
Hei-de fazer florir açucenas nos meus lábios;
Hei-de apertar a mão que me castiga;
Hei-de beijar a cinza dos escombros;
Hei-de esmagar a dor
E hei-de trazer, aqui, sobre os meus ombros,
A tua cruz, Senhor!

                                     Miguel Trigueiros*

* Este poema foi publicado no livro com o mesmo título, em 1944, por Miguel Trigueiros (1918-1999), hoje um poeta desconhecido. Entre outros, foi autor de Resgate, livro de poemas publicado, em 1939 (Prémio Antero de Quental). Fez parte do grupo dos “Cadernos de Poesia” (1942-44) que procurou criar uma nova corrente poética na linha da Presença de José Régio (1927), chamada “Poesia Nova”, conforme ao ideal presente num grupo de jovens poetas colaboradores do Suplemento “Seiva Nova” do Notícias de Viana (anos de 42 e 43), em que se integrou ativamente o poeta Fernando de Paços (1923-2003). Este daria à estampa o livro de poemas Fuga (1944) na Coleção publicada pela “Poesia Nova” de que Miguel Trigueiros era o principal dinamizador, em Lisboa.
                                                                    T.F.P.