Capela de S. Lourenço em Viana do Castelo |
O cristianismo está a perder vitalidade de uma maneira evidente para todos. O que tinha surgido há vinte séculos como uma força libertadora de intensidade nunca vista, foi perdendo ímpeto até que hoje, pelo menos na Europa, parece à beira dos últimos estertores. Como explicar este fenómeno?
Decidi levar a cabo uma análise de um esquematismo extremo, para evitar ter de chamar uma equipa de historiadores, filósofos e teólogos, os quais, de resto, iriam obscurecer por completo a ideia simples que quero transmitir: quando eles tivessem acabado o seu trabalho, teriam conseguido montar uma rede quase inextrincável de nomes, factos e ideias, estendendo-se no tempo ao longo de cerca de dois mil anos, ocupando geograficamente todo o globo terrestre, e envolvendo milhares de pessoas, ou talvez milhões, ou talvez milhares de milhões.
Eu pretendo fazer uma coisa ao mesmo tempo muito mais modesta e muito mais ambiciosa: identificar uma única direção − dominante e intemporal − no meio do caótico emaranhado do fluxo histórico das correntes de ideias, subcorrentes, subsubcorrentes, etc.
Não quero ser exato. Quero precisamente o oposto da precisão. Claramente anti cartesiano, fujo das ideias claras e distintas. Afasto-me imaginariamente para um ponto suficientemente distante do planeta Terra. Deixo de ver pormenores, vejo apenas manchas coloridas, com gradações contínuas de cor e portanto sem fronteiras a separá-las.
Recuando ao tempo de Jesus, localizo mesmo assim neste mapa de cores mal demarcadas, duas manchas relativamente bem definidas, dois polos em redor dos quais de organizam todas as linhas de força:
OCIDENTE -- ORIENTE
Há um fervilhar de ideias em torno de cada um destes polos. Tanto um como outro nascem e crescem num caldo de cultura de ideias míticas/religiosas, diferentes num e noutro caso, ambas irrelevantes para os presentes propósitos. O polo ocidental é uma mancha que alastra a partir da Grécia por volta de meados do último milénio antes da era de Cristo. Estamos habituados a chamar “milagre grego” ao que aí aconteceu nessa altura. Conheço muito pior o polo oriental. Para ter dele uma representação histórico-geográfica, situo a sua origem na Índia, nos inícios do mesmo I milénio a.C., quando os Upanishad deixam o solo firme da religião védica e se embrenham também pelos desfiladeiros da filosofia [1].
Para não faltar ao prometido esquematismo, aqui estão resumidamente as características destes dois polos:
OCIDENTE:
RAZÃO
ATENÇÃO AO VISÍVEL
ou seja
ATENÇÃO AO EXTERIOR
ou seja
ATENÇÃO À MATÉRIA
ORIENTE:
INTUIÇÃO
ATENÇÃO AO INVISÍVEL
ou seja
ATENÇÃO AO INTERIOR
ou seja
ATENÇÃO AO ESPÍRITO
Deus encarna em Jesus Cristo num ponto geográfico e num instante histórico que são ambos ponto de encontro e confluência dos eflúvios orientais e ocidentais. A minha tese é a de que isto não aconteceu por acaso e que a Redenção deveria envolver a síntese destas duas grandes tendências. E os primeiros tempos do cristianismo, de facto, pareciam ir nessa direção.
Pareciam ir nessa direção, mas a síntese ainda não estava feita, e nunca chegou a ser feita, porque houve cristãos, homens de carne e osso, tão falíveis como quaisquer outros, que decidiram, em vez de procurar a quase impossível união dos dois polos, suprimir pura e simplesmente um deles, o polo oriental.
Desçamos um pouco do abstrato ao concreto: os factos a que me refiro no parágrafo anterior consistem na condenação das correntes gnósticas como heréticas e na concomitante declaração como apócrifos de vários dos Evangelhos que nessa altura circulavam. O gnosticismo era a versão oriental do cristianismo, com a superlativação do espírito e a liminar recusa da matéria, vista como única fonte de todos os males e como incapaz de produzir algo de bom.
Na lógica clássica, a negação da negação é equivalente à afirmação. Poder-se-ia então pensar que, nesta luta interna do cristianismo, a corrente vencedora, ao recusar a recusa da matéria, tomava o partido da matéria. No entanto, a lógica real é mais subtil do que a lógica formal. Assim, ao longo dos subsequentes séculos, o cristianismo teve sempre entre os seus mais dignos representantes, homens e mulheres de enorme espiritualidade.
Mas se isto é verdade para todos os santos que deixaram o seu nome na história, e também para os muitos mais que permanecerão para sempre desconhecidos, não o é contudo para a maioria dos fiéis. Recusando a síntese quase impossível entre a recusa da matéria e a aceitação da matéria, e preferindo recusar a recusa da matéria, o cristianismo falhou em dar o salto em direção à Redenção, e, sem dar por isso, abriu as portas ao materialismo. As consequências estão agora à nossa vista.
9/10/2015
Fernando Henrique de Passos
[1] Deixo aqui claro que vejo uma antinomia (quase) irreconciliável entre Religião e Filosofia: a primeira oferece a consolação da adoração; a segunda, a inquietação da busca. Talvez seja apenas mais uma instância da dicotomia feminino/masculino: a mulher procura amparo, o homem procura aventura. (Isto no tempo dos trogloditas, claro; hoje todos nós sabemos que já não é assim.) Na Índia, a tensão da Filosofia contaminou a paz da Religião; penso que o gnosticismo cristão herdou essa característica através dos seus “genes” orientais. A questão pode pôr-se assim: o fim último de um mistério é que o adorem ou que o desvendem? Talvez a feição mais espiritual da filosofia oriental tenha facilitado a sua aproximação à religião. Mas também é verdade que há aproximações desse tipo no cristianismo, e não só aproximações ao platonismo – muito naturais por este ser a principal exceção espiritual ao materialismo da filosofia grega – mas ao próprio aristotelismo, como é bem sabido. Mas esta observação só confirma o que já estava implícito desde o princípio deste texto: quanto mais queremos olhar a história de perto, tanto mais confusa e “misturada” ela se nos apresenta.
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