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Senhor dos Passos, Igreja Matriz de Alcantarilha |
PÁSCOA PARA UM PEQUENO RIBEIRO
certo dia...
malmequeres amarelos entre papoilas
vi num campo largo e sem sombras.
lá sonhava tantas vezes com os silêncios eloquentes
do pequeno leito de água a correr
num estreito e triste ribeiro.
como eu gostava desse pobre fio de água
que transparecia tanta bonomia.
às vezes perguntava ao vento se o coração
aberto de um ribeiro podia ter pecado.
só que ele não respondia.
nessas horas apagadas via-o atónito
e a olhar-me assombrado.
vendo o seu espanto dizia-lhe baixinho: sou Jesus.
vim ao mundo também para ti, bom ribeiro.
mas ele nada dizia. e eu pensava
que não me conhecia. não sabia que eu era
o Deus encarnado. ah, se ele o soubesse...
senti-me desamparado, simples mendigo me vi.
em que deserto eu entrara, em que mundo tão bizarro.
eu proclamava o amor. mas quem me queria escutar?!
nem um ribeiro desprezado...
certo dia...
fui levado para o pretório e julgado.
o juiz foi a dura populaça.
arrastei a cruz pesada. enorme.
depois nela fui pendurado. sem piedade.
o tempo trouxe-me a morte.
numa sepulcral pedra fiquei deitado.
soldados vigiavam-me. temiam-me?!
oh desgraçados!
ao terceiro dia, a morte venci:
soltei os meus pés e à vida regressei.
pelo campo caminhei com a vitória no espírito
e logo me recordei do pequeno ribeiro.
apressado visitei-o.
a água deslizava mansa.
transparente como antes.
toquei-lhe com as mãos ao de leve.
e vi-o solitário, seco, pedregoso,
como o conhecera antes.
naquela hora ofereci-lhe toda
a minha divindade!
Páscoa, 2025
Teresa Ferrer Passos
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Pintura alusiva ao encontro de Jesus com Verónica, exposta numa rua de passagem da procissão do Senhor dos Passos em Alcantarilha
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Jesus é pregado na cruz |
A morte é a pedra onde não corre a água.A vida é o espírito em que a água corre sem parar.
T.F.P.
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BREVE REFLEXÃO PASCAL:
«Sentir ou contemplar uma Presença remete-nos para a metáfora do centro. E, de facto, a palavra contemplar vem de "templo", e significa olhar a partir de um templo. Este "templo" é o lugar da presença de Deus, é o nosso próprio corpo: "O vosso corpo é templo do Espírito" recorda-nos S. Paulo (I Cor, 6,19).
Na viagem interior através deste "templo", o importante é chegar ao centro. Ao centro da alma. Porque nesse centro já está o céu antecipado, o paraíso, o jardim do Éden: "O céu é onde está Deus" escreveu Santa Teresa (de Ávila). Céu, Deus e amor são a mesma coisa».
Juan Antonio Marcos, "A Experiência pré-contemplativa. Um luxo e um privilégio", Revista de Espiritualidade, nº 128, Outubro-Dezembro 2024, pág.340.
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JESUS MORRE NA CRUZ
O SINAL. A CRUZ.
Jesus é o corpo precário, qual folha
a tombar da grande árvore.
na hora única o olhar de Jesus fecha-se como
uma vela a apagar-se. devagar. o corpo exausto chora
sem se ouvir. o desalento é um enorme silêncio.
só o seu Espírito espera abrir o céu do amor.
o céu do Pai que está no Filho aqui, na terra do demo.
Presente e Presença no espaço do mal perdido do bem.
a liberdade de Deus parecia transmutar-se em derrota.
o corpo do Filho que era o próprio corpo do Pai
expirava na cruz, na cruz de tudo o que é sórdido
e repelente.
a conspiração tétrica fez nascer o ódio e a salvação
surgiu como um lugar de engano, de descrença.
o corpo morto de Jesus provocava
todos os atos infames e exaltava-os.
a chuva começava a cair desesperada.
a hora da morte respirou a hora do nada. a hora em que
só Deus vivia na Casa do Homem, do Homem sem fé
no seu poder, sem esperança no seu Amor,
sem vislumbre de descobrir uma salvação.
de tudo isto ficou um sinal.
ontem como hoje,
a imagem de uma cruz.
o sinal. sem fim.
Sexta-feira Santa, 2025
Teresa Ferrer Passos
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E flores brancas surgiram nos ramos... |
«Que saibamos ressuscitar em cada dia.»
Henrique Manuel Pereira
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Jesus Ressuscitado (Igreja de Cerva, Alto Tâmega) |
A SEGUNDA PÁSCOA
Por toda a parte se multiplicam os sinais por Ele anunciados:
eis que se aproxima a Nova Vinda de Cristo.
Mas o poeta ensurdeceu
e já não consegue escutar
a poesia que os anjos lhe segredam ao ouvido
para depois a poder reproduzir.
E então um grande silêncio alastra
pela folha de papel em branco
como se fosse o som de mil trombetas mudas,
de mil profetas calados,
de mil oradores paralisados
por um medo do palco inesperado.
E deste uníssono de nadas
nasce a voz de uma pergunta
que apenas um herege se atreveria antigamente a formular
mas que o poeta agora lê na própria boca desses anjos
que ele deixou de conseguir ouvir:
o que faltou há dois mil anos?
E a resposta surge prontamente,
como se fizesse parte da pergunta:
faltaste tu,
faltou a tua conversão;
sim, tu já lá estavas nessa altura,
mas tu ajudaste a pregar Cristo no madeiro;
com as tuas dúvidas,
com a tua soberba,
com os teus medos,
com os teus desejos.
O poeta ouve sem uma palavra a voz do silêncio
a martelar-lhe a consciência,
e compreende o seu papel,
o papel da humanidade,
na preparação da Nova Páscoa.
Desligar a cavilha que liga a nossa vontade
à vontade do mundo
e ligá-la de seguida à Vontade de Deus
é tudo o que é preciso para que a Nova Páscoa
seja uma Páscoa sem Cruz
deixando livres as mãos de Jesus Cristo
para que com elas pegue nas nossas mãos
e nos conduza até à Terra Prometida,
até ao Reino de Seu Pai.
Domingo de Páscoa de 2025
Fernando Henrique de Passos
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E QUE OS CORAÇÕES CANTEM UMA NOVA PÁSCOA.
BOA PÁSCOA!