Aguarela de Estêvão do palacete da Quinta da Cruz, antigo lagar de azeite e poço de abastecimento da população, Alcantarilha, Algarve |
A MISÉRIA
nos sapatos rotos nasce a dor
e a dor fica rente ao chão
a dispersar-se como gotículas escassas de chuva
e ainda a percorrer o fulgor do jovem
desconhecido de si e do além e do outro.
Num mundo que é o único gueto que encontrou
o jovem esconde o seu coração absorto.
Abandona-se ao abandono seguindo
um destino certo a rir-se desengonçado
a dar cambalhotas e sem trilhar um caminho novo
e capaz de sacudir
aqueles sapatos decrépitos de sentido e ululantes
junto da sua alma atónita e precária.
A dor subjaz. Algures transformada torna-se uma ausência
uma fuga quieta a augurar o nada, o deserto informe
em que se atola cada dia cada hora cada instante.
O seu querer apaga-se sem uma vontade vencedora.
Com os sapatos desmoronados, o jovem
não tem mais do que a certeza de que
estão sujos de nada.
E esse nada que é a palavra que conhece
cresce no jovem perdido de tudo e sufoca-o como
pedestal de uma medalha honorífica aprisionada.
A liberdade não passa por aí, mas sente-se livre até ao cansaço.
Com os sapatos rotos a esfarelar
qualquer desejo de ser outro
de ser uma personagem nova é delírio.
Os sapatos rotos tornam-se a ínsua a que se agarra
e que se dilui numa vida sem nada
e que tudo cobre de sentido.
Tateia a felicidade e começa a liturgia
de uma eterna e doce e bela idade.
3/6/2023
Teresa Ferrer Passos
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