sexta-feira, 23 de outubro de 2020

 

 

POESIA A RENASCER NUM LABIRINTO PERDIDO

  

«Aqui é o tempo do dizível»

                                      Rilke, Elegias de Duíno (Nona Elegia)

  

Envolvido no manto das palavras por dizer, defino o livro de Manuel Neto dos Santos, titulado Sob o Signo de Cibele, dado à estampa no ano de 2018. «Aqui é o tempo do dizível», escreveu o poeta alemão Rilke. Todo o dizível é, na verdade, uma linguagem poética que se expõe no discurso de cada verso, de cada sonorização ou de cada assonância, na procura de uma marca, de um compasso inaudito e obscuro, na entoação de cada palavra.

Todas as palavras escolhidas, a romper do silêncio como nunca tivessem sido ditas/escritas, tomam sentidos inesperados, insuspeitos, provocam um caminho, um rumo, uma interrogação ou um real, a ser olhado como um irreal que só podemos afrontar.

Vejamos o poema «Possessio Maris», em que o mar possuído se transforma numa “rosa de sangue” na sua ausência de resposta ao poeta; e o "vazio" assume um lugar cimeiro nessa mesma ausência indesejada. O coração esvaziado até ao fundo “tudo recebe”, como se fosse a salvação, ou a redenção imprevista, mesmo que continue como se significasse apenas “sementes ressequidas”.

Aqui, realçamos o terceiro quinteto, em que o “mar possuído” continua a ser uma deceção, senão mesmo uma ilusão ou até uma perda irremediável. E a escassez torna-se em outro “excesso” que não dá sossego à alma: “tudo é móvel e plural”. Eis o cerne da realidade: a sua pobreza, a sua multiplicidade dispersante, que enevoa os sentimentos, como se estes não existissem.

Assim, só resta ao poeta, “existir nos contornos corporais”, esses sem adequado significado, ao reduzirem-se a uma falsa aparência, indutora de erro e a delir-se de uma essência que não se espelha em mais do que uma realidade de contornos imprecisos e abafados neles próprios.

Como escreveu Wittgenstein, “ficamos sempre pelas palavras, ou melhor, por esta terrível impotência”. Como Manuel Neto dos Santos acentua em «Sob o Signo de Cibele», a palavra do poema coarta, quando não oculta, a voz que se quer ouvir para além de si, para além da dor. Lembro o versos, “Sou ourives do passado” ou “Sou o ardor das feridas já esquecidas” (pp.37) que são a chave de um presente que faz da perseverança a sua guia, e, da viagem dentro do teatro do mundo, a sua recorrente identidade.

E, afinal, “a minha alma é feita de todas as pontas de uma fonte” (p.30). De uma fonte que não cessa a sua procura de uma saída frutuosa, semelhante aos frutos da terra que, na sua escuridão, se tornam forma e gosto e, mais do que tudo, vida generosa e pura. O seu silêncio é o alimento criador, é a sua seiva que constrói, incessante, a repetir o gesto que renova e procria um universo único mesmo que, como diz o poeta, seja “contra as pedras” e com a voz “embriegada de fogo”. Logo a seguir, conclui, com esta imagem mareal: “a espuma deixa / sempre, um pouco de si mesma / sobre o areal” (p.31).

O poeta de «Trovas de um Homem da Terra» (1991), nasceu também na proximidade do Atlântico revolto, como o revela em «Sob o Signo de Cibele» (2018). As cenas em que nos envolve, na leitura destes poemas, sempre a provar a sua costura oficinal ─ como é toda a poesia que se insere na nossa herança poética de oito séculos ─, têm o rumor dos frutos, mas não lhes falta o rumor do mar.

Toda a natureza se digladia nas sombras rasteiras ou na luminosidade dos sentidos, como se a paisagem crescesse no coração do poeta, ávido de sons e de um ruído atordoador, em contrapartida, não fizessem mais que silenciá-lo. Lembro, a finalizar, estes eloquentes versos de poema sem título, com o 1º verso “Abro distâncias entre mim e o mundo (p.55) e que Manuel Neto dos Santos termina, escrevendo: “Abro distâncias entre mim e o dia e sou caudal / da voz que, em mim, já estanco”. A distância abre o caminho e a voz do poeta, cheia de silêncio, aproxima-se do mundo impenetrável e tão aberto.

 

23 de Outubro de 2020

Teresa Ferrer Passos

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