Na véspera
do
Ciúme Efémero
(Conto)
«A gordura acumulara-se na travessa de barro. As sardinhas e as batatas não tinham tempo para arrefecer. O tilintar dos talheres denunciava que Rouxi comia com prazer, se não com volúpia, naquela casa de porta para a rua, sempre entreaberta (o fresco só entrava até ao meio-dia). Naquele verão, a calma parecia o prenúncio de alguma má sorte; má sorte a pairar pelos lugares onde as criaturas humanas se juntavam, mesmo que fosse por pouco tempo.
Silgo olhava Rouxi de vez em quando. Sorria, sem que ela visse; é que estava feliz por a ter ali, saboreando o que ela saboreava. Frente a frente, como mirando-se no espelho que lhe dava a sua imagem, os dois jovens, pela primeira vez, tinham sido capazes de abandonar o quarto exíguo onde na pacatez da noite se escondiam, como cadastrados perseguidos pelos grilhões da lei.
O pai de Silgo ficara sozinho com o filho desde o dia em que a companheira partira, em busca de melhor vida em terras de França. Silgo tinha apenas onze anos. Onze anos de solidão. Só a irritabilidade da mãe e o mau humor do pai, lhe davam tréguas. Após a partida daquela mulher exausta, Silgo notou uma mudança no pai que não sabia definir. Conhecia-o pelos insultos com que agredia a mulher de olhos cinzentos como a lua, pelas ausências mais ou menos prolongadas de casa, pelo desdém com que o observava depois do regresso da escola. Com a sua fuga, surgiram as noites passadas com Silgo, em silêncios que Silgo não entendia; às refeições, lançava olhares furtivos e insistentes; e as mãos, tacteando, enrolavam-se-lhe no pescoço.
Recentemente, Silgo conhecera Rouxi. Ambos contavam dezasseis anos. Juntos, foram descobrindo o prazer de passear nos campos cobertos de lírios e estevas ou simples urzes ressequidas pela canícula; e passavam juntos horas a fio, como se fossem uns instantes. Tudo à sucapa do pai, ameaçador, como sempre. Silgo percebia o inconformismo do pai, derrotado por aquele amor indesejado, mas tinha o cuidado de não o dar a entender.
As discussões eram de manhã ou à noite, logo que uma oportunidade surgia; a causa era sempre Rouxi, a Rouxi profanadora do espaço que tentara criar somente com o filho... No momento em que os dois jovens concluiam a refeição, com a serenidade de um céu que invadisse a terra, o pai de Silgo penetrou bruscamente, empurrando a porta de modo violento. Com os olhos saídos das órbitas, como balas sem direcção, deu um berro enorme: “O orgasmo à mesa! Rua! Nojenta!” Rápido, dirigiu-se ao armário onde a espingarda, usada na caça às codornizes, estava sempre pronta para uma caçada imprevista. Silgo empalideceu. Desvairado, subiu ao primeiro andar. O pai queria matá-lo! Entrou no seu quarto. Olhou o azul enigmático da celeste brandura através da pequena fresta quadrada. Nesse instante, escutou uma detonação. O que fizera o pai?! Só podia ter usado a arma contra si próprio ou... contra Rouxi! O desespero invadia-o. Desceu as escadas sem ver os degraus...
Vislumbrou a mesa... e Rouxi. Jazia inerte sobre a toalha que a afagava como sudário preparado para uma morte. O pai, de pé. Ria. Era um riso longo, como jamais ouvira a alguém. A Rouxi restava a condição de ser apenas um corpo sem vida! Silgo puxou-a pelos braços com ternura e o seu coração brando, não conteve as lágrimas da revolta. A ferida fôra aberta, drástica e irremediável.
Arrastando-a, Silgo subiu de novo as escadas sem cansaço. Empurrou a porta do quarto mais quente do que era costume. Levou-a até à cama. Deitou-a como a uma criança adormecida antes da noite chegar. Um fio de sangue nascido entre os cabelos negros e lisos de Rouxi, empastava a cobertura florida, essa cobertura que era uma das poucas coisas que recordava o tempo da sua mãe...
Rouxi tinha os olhos esmeralda ainda abertos, como se o terror a habitasse de modo visível. Silgo não os fechou. Queria mirá-los no tempo da ignorância da morte, que era um tempo curto mas que ele procurava tornar total. Total, enquanto existisse esse intervalo entre a morte e a sua consciência.
Silgo conhecia, pela primeira vez, a imagem da morte que dói, como se fosse queimadura em lava de um secular Vesúvio. Mas a morte só atinge quem não é amado. Rouxi continuava na memória perturbada de Silgo, como um vento norte que não deixa de soprar para anunciar a intempérie. “A culpa é a pior das perseguições”, pensava Silgo, inconformado com a sua deserção; ao notar a fúria que invadia o pai incontrolado, fugira! E... Rouxi acabara por tomar o seu lugar. Mas era nele que o pai desejava exercer a sua vingança. “Não em Rouxi!”. Tinha a certeza. Porque fugira? “Cobarde, sou um cobarde!”, repetia em tom inaudível.
O ódio do pai desabara sobre a pobre Rouxi. E a verdade é que a chamara ali por o pai lhe ter dito que só regressava à noite! “Meu pai enganou-me para me fazer cair na cilada da morte premeditada”, sussurrou, com nostalgia. Com o olhar fixo como um animal obcecado pela presa, cobriu com os seus braços o corpo de Rouxi; tocou com as suas mãos as mãos dela; depois, o pescoço e a boca levemente aberta; afagou-lhe os cabelos húmidos e pousou os lábios no sangue, como se fosse um néctar divinal; a língua ficou amarga, mas reteve a saliva por alguns minutos. Era o sabor da perda; guardava-o sofregamente no seu corpo febril e extenuado de lascívia amortecida pela dor.
De súbito, escutou uma voz ecoante, como se viesse de enorme gruta até aos seus ouvidos cheios de sons indistintos e vagos: “Perdi a vida, mas não te perdi a ti. Estás mais próximo do que nunca. Somos, enfim, um só, porque os nossos corpos se uniram na vida, antes da morte. Quem os distingue? Como é possível alguém querer separá-los, como se ambos não fossem um só? E vou dizer-te uma coisa: não há inferno! Isso é uma ideia efabulada por aqueles que temem o fim do medo. Quem tem coragem de condenar, além dos homens? Qual seria o juiz divino capaz de aniquilar a sua própria obra? Sei agora coisas que desconhecia e que agora partilho contigo, neste momento único, porque o teu amor o tornou possível”.
Atónito, mas feliz, Silgo não pronunciava uma palavra. A eternidade desses momentos jamais o pai a poderia matar. “Quem pode matar o sentimento de dois corpos que são uma só alma?”, interrogou-se Silgo, com uma alegria semelhante à das flores, quando vêem nascer o sol no horizonte distante. Maravilhado ainda com aquela voz do além-próximo, foi irresistível perguntar-lhe: “Que pensas do meu pai que o ciúme enlouqueceu e te fez vítima inocente?”
O ciúme é um egoísmo cimentado no medo. Só assim posso definir esse egoísta, esse homem cobarde... a arma que usou é a prova da fraqueza do seu corpo velho, amesquinhado pela raiva de não alcançar o seu mórbido desejo de te possuir... Silgo tentou escutar mais uma palavra, mais algum som, mas nada mais ouviu. Ficou imóvel, ainda durante algum tempo. Talvez voltasse, talvez... Com o suor borbulhando pelo corpo todo, elevou-se ligeiramente e fechou com lentidão os olhos de Rouxi. De pé, contemplou ainda a jovem de cabelos finos como folhas de pinheiro.
Saiu do quarto. Rápido, desceu as escadas. Olhou a mesa, como se há muito tempo a não visse. O pai, sentado, mastigava os figos que tirara da cesta de verga. A fome seria o seu anátema ou a sua libertação? Sem desviar o olhar, pressentiu os passos de Silgo a descer os estreitos degraus de madeira descorada e carunchosa. Ao aproximar-se do pai, Silgo olhou-o persistentemente. Este não lhe correspondeu. Impaciente, com uma expressão de falso riso e com os olhos fitando a cesta vazia, o pai disse-lhe: “Então?! Já enterraste o cadáver na cama onde o teu corpo enlaçava o dela na minha ausência?”
A expressão pálida de Silgo flamejou de ódio. A espingarda ainda permanecia em cima da arca de madeira envernizada. Silgo contemplou-a com a sensação de que ela não tinha realizado todas as suas missões. Com passos lentos, encaminhou-se na sua direcção. O pai olhou-o pela primeira vez de frente e, soltando uma gargalhada ruidosa, continuou a provocação. “O seu corpo nu, entre os lençóis, não estará à tua espera? Vai, vai fazer-lhe companhia! Não vês que está sozinha? Porque te demoras? Olha que o corpo pode arrefecer... Ah, ah, ah...”
Silgo não respondeu ao desafio. O silêncio pesava na casa lúgubre. Num gesto breve, o jovem quebrou a pausa do riso que banhara o pai na culpa. Ouviu-se uma detonação. Duas. A cabeça do pai sangrava sobre a toalha de quadrados brancos e negros. Silgo, enrolando-se sobre as pernas débeis, deixou cair a arma. Encaminhou-se para a escada. Os braços pesavam-lhe horrivelmente. Num gesto irreflectido, olhou a arma tombada no pavimento. Seria agora um objecto inútil ou mais vantajoso do que nunca? No seu espírito pairava a dúvida. Queria uma resposta, mas ela tardava. Então, como um autómato, subiu o primeiro degrau. Queria ver Rouxi, ainda uma vez, a última? Mas, não seria lícito, parecia-lhe, profanar a pureza da morte, suspensa no corpo do ser amado. Sem lei ou razão, só com a paixão do impossível. Restava-lhe contemplar a vida vencida, aos dezasseis anos, pela crueldade.
Na força da idade, sonhara um idílio imortal. Afinal tão breve! Subiu o segundo degrau. Sem convicção, sem firmeza. Numa insegurança estranha, pois nunca tivera tal sentimento, recuou, lançando um olhar ensanguentado pelo espírito, para a arma inerte. “Será que desejo ver Rouxi?”, interrogou-se, numa inquietação inesperada.
Com os dedos trémulos e suados, pegou na arma como se ela fosse a última esperança. A esperança de reencontrar a imagem ou a saudade de Rouxi. Uma detonação seca, ecoou na casa mergulhada em perdição e inocência... O corpo de Silgo rolou nos degraus. Num silêncio cúmplice, apenas estes sentiram as lágrimas e o espanto.»
in Teresa Ferrer Passos, O Grão de Areia (Contos), Universitária Editora, Lisboa, 1996, pp. 119-125.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Deixe aqui o seu comentário