sexta-feira, 29 de março de 2019

Acerca da poesia e de como a interpreta Carlos Lopes Pires

I - A POESIA EM DESCONSTRUÇÃO de Carlos Lopes Pires


vi-te passar no céu
do meu quintal.

tu tens o dom
das coisas leves

das que seguem a luz
e nos trazem
a direcção da noite

tu moves
-o que não alcanço

Carlos Lopes Pires,
aquele que não ouvirás mais, p.69

Um panteísmo interior habita a poesia-síntese de Carlos Lopes Pires: o anátema interiorizado e a matéria arduamente construída, é uma representação-Deus, ou, somente um concretismo-natural a esmagar cada palavra, ou a exaltá-la a cada instante vivido ("naquele tempo / os homens tocavam / as estrelas que há na água", p. 36). 

Entre o gesto e o silêncio há uma oração, entreabrindo-se na busca da sacral realidade dos dias. Entre o nihilismo e a emoção das origens, o poeta extasia-se perante o vento, a chuva, os peixes, as árvores ou o pequeno gato da carícia ("não há números para ti // não há palavras / que possam encher / o livro da tua ausência"(p. 104)).

Sente-se a submergir na terra húmida demais. A deceção é um fim. E o poeta escreve-o. Como no barco de Caronte, ardente de uma novidade feita de "folhas secas" e à espera de um emudecido "calendário", Carlos Lopes Pires oferece-nos Aquele que não ouvirás mais (Hora de Ler,  Leiria, 2019). Estamos ante uma grande metáfora da inquietação transfigurada em poema, a abranger sentidos imprevisíveis e opacos, num mundo que perece por dentro, e se desconstrói no desasossego, "tão longe dos lugares", tão próximo do poeta.

Facebook, 21/3/2019 (alguns dias depois de ter recebi do autor o citado livro)


Teresa Ferrer Passos


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II - ACERCA DA POESIA

Ou de como a interpreta Carlos Lopes Pires

(na Apresentação do seu livro 
  
aquele que não ouvirás mais)

A distinção que CLP faz entre aquela que denomina "poesia da literatura" e a "poesia que não é arte", 0u seja, a poesia "anti-literária" ou "anti-arte", diremos nós - a própria poesia de CLP - possui um equívoco de raiz. Diz CLP: "Os poetas da literatura recorrem a técnicas que lhes permitem, ilusoriamente, representar a realidade, e por isso realizam um fingimento". E, mais adiante, CLP acrescenta: "A poesia de que falo não é arte"(arte é a sua própria poesia). A sua própria poesia "não representa, não finge, nem mimetiza a realidade. Ela é realidade".

Estas considerações de CLP esquecem que há uma única realidade, mas, com outros reais dentro dela. De facto,  quer a primeira, a "poesia da literatura", como a segunda, a "poesia anti-literária" - a poesia que CLP diz fazer -, só podem ter uma finalidade, a finalidade criativa (imaginativa).  O objetivo é comum. E essa finalidade mútua, é a transgressão, o desvio, uma realidade que toca um real de raspão e sem o mimetizar, sem o imitar. Uma e outra realidades ("a poesia da literatura" e a poesia que se lhe opõe, "a poesia que não é arte", ou seja a poesia de CLP), têm o ponto comum de entrar em choque com a realidade concreta - visível, sensorial, matéria viva. Por isso não são antagónicas, mas uma só arte ou, no caso da poesia, literatura.

A poesia, precisamente se mimetizar, se só se revestir de representação da realidade, de uma realidade única, não é literária. Ora, a poesia é literária se acrescentar uma nova realidade à que lhe serve de cenário. Mesmo dentro da realidade material há um mundo vasto de objectividade e de subjectividade ("louvo o teu silêncio/tão longe dos lugares/e ruídos deste mundo.// o que nele se move/estranho a tudo o que é deserto//e o que nele se ausenta/de casas ruas sombras insetos//pois tudo/de ti se alimenta/de uma longa imensa ausência" (Carlos Lopes Pires, aquele que não ouvirás mais, p. 71). Só assim esse mundo pode subdividir-se ou globalizar-se, reduzir-se ou alargar-se. 

Esse mundo poético será um dos mundos reais possíveis, mais ou menos bem urdido ("acredita nas árvores//que mesmo sem frutos/são sinceras/contempla as árvores//pois um dia/seremos todos/como elas" (Carlos Lopes Pires, Ob.cit., p. 25). A representação (ou artificialismo, como parece crer CLP) não é "uma técnica de fingimento". Veja-se que, mesmo o fingimento não é absoluto, como nos sugere Fernando Pessoa no poema «Autopsicografia»: "O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente." (Obras Completas de Fernando Pessoa I Poesias, 2ª edição, Ática, 1943, p. 237).

Se recorrermos a Herder (Ensaio sobre a origem da linguagem), poderíamos dizer que a linguagem é o espírito da matéria porque não a imita, não finge, antes é uma constante transgressão, um contínuo não à realidade imediata das coisas. Lembro-me também de Foucault e a sua obra As palavras e as coisas. Umas e outras não se confundem, são autónomas, com identidades próprias, com princípios de origem e de finalidade que poderíamos opor. 

"A poesia que não é literária é a realidade", sublinha CLP. Nós diríamos que a poesia é uma realidade, quando considerada literária. Porque, a literatura é toda ela uma transgressão (e não o contrário, como diz CLP); ou, se não o é, então, é uma ausência de nova realidade, ou seja, de uma nova verdade própria, nas suas vertentes poética, do conto ou do romance. Ou se cria uma nova verdade ou caímos numa terrível falácia existencial que se traduz num poema, num conto ou numa peça de teatro.

De realçar, será a fenomenologia de Husserl, na qual podemos aperceber-nos de que sem a dimensão da consciência, a realidade objectiva esvaziava-se de sentido(s). Ora, a poesia literária ou arte é uma realidade subjectiva, precisamente porque cria uma realidade que não existia, uma realidade em si mesma, uma realidade fictícia (ou "artificial", na expressão de CLP).

Porém, mesmo essa poesia literária, ainda que CLP não o admita, é-nos oferecida pela poesia literária e pela poesia do CLP à qual ele prefere chamar "não literária", porque não inclui "a arte", mas "o desvio", "um mundo de transgressões", "uma marginalidade". Mas não será tudo isso mesmo que define a poesia literária ou arte? 

28/3/2019 (o texto de Apresentação do livro citado, que nos foi enviado pelo autor, foi lido em Moinho de Papel, Leiria, em 23/3/2019).

Teresa Ferrer Passos

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