sábado, 8 de junho de 2024

V CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE CAMÕES

 NO INÍCIO DA CELEBRAÇÃO DO V CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA LUÍS VAZ DE CAMÕES a realizar entre 10 de Junho de 2024 e 10 de Junho de 2026, aqui publico um excerto de um artigo datado de 25/8/1976 e assinado pelo meu ortónimo Teresa Bernardino no Jornal Novo.

CAMÕES FALSEADO

Foram publicados pelo Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis alguns cadernos denominados «Juventude e Cultura», que se destinavam, conforme se afirmava na Introdução, a levar às mais vastas camadas estudantis e populares alguns autores menos conhecidos do nosso meio ou cujo acesso era difícil. Escolheram-se, no entanto, autores que embora fossem realmente pouco conhecidos, tinham um valor muito discutível como é o caso de Samora Machel ou Amílcar Cabral, e omitiram-se outras talentosas e significativas figuras das Letras ou da Ciência europeias.
Mais particularmente no que respeita ao nosso país, não se apresentaram os mais relevantes poetas e escritores com a isenção exigida a quem se propôs efectuar tal tarefa, como o prova a publicação de uma peça teatral subordinada ao título Camões.
Formularam-se conceitos imaginosos que deturparam a mensagem do maior poeta português, expressa na sua obra maior: Os Lusíadas. Para se publicar uma peça onde Camões era o centro da acção, era necessária uma fiel interpretação do seu pensamento, livre de qualquer pressuposto, e não desenvolver todo um ambiente que nada tinha de comum com o grande épico, chegando-se mesmo a deturpar a sua verdadeira personalidade. Para além da superficialidade no modo como foi concebida, a peça confere a Camões atributos (bêbedo, hedonista, etc), cujo único fim foi desprestigiá-lo.
O seu autor não analizou previamente as obras de Camões, para depois poder escrevê-la, mas partiu unicamente da imagem que o regime deposto nos oferecia e que era unilateral e, por isso, errónea. Na verdade, se Camões enaltecera os feitos dos portugueses, fizera-o porque eles eram o resultado do saber científico, da coragem e do sacrifício dos navegadores quinhentistas, não deixando de apontar os males que lhes ía trazer a bela aventura ultramarina. Prova clara disso são as sintomáticas palavras pronunciadas pelo Velho do Restelo, que o poeta define como «venerando», «esperto», «honrado» e «sábio só de experiência feito»: « Ó glória de mandar, ó vã cobiça / Desta vaidade a quem chamamos fama! / Que mortes, que perigos, que tormentos, / Que crueldades nelas experimentas».
Tal como no passado, Camões foi vítima dos falsos epítetos daqueles que julgando-se «progressistas», continuam imersos em ideias «obscurantistas» que sobre ele tanto pesaram. Com efeito, só quem ignorava o único, o verdadeiro Camões, poderia supô-lo, como se verifica na peça, um modelo perfeito para representar adequadamente a personagem de um nobre latifundiário, explorador do trabalho do povo, que considerava sem quaisquer direitos, imagem actual do grande capitalista. Camões é, nesta peça teatral, identificado com um indivíduo de espírito classista, que ostenta a sua superioridade, que despreza os pobres, vítimas da sua opressão e que vive, claramente, à sua custa.
Difamou-se o poeta ao fazê-lo personificar um grande e intransigente senhor, pois ele sempre foi pobre e também um explorado porque as suas obras não eram condignamente recompensadas pelo rei (foi-lhe conferida uma pequena tença, que muitas vezes recebia tardiamente).
Por outro lado, um dos episódios de Os Lusíadas que é focado, a Ilha dos Amores, é concebido como representando algo que é uma antítese do seu verdadeiro significado. Para Camões, essa Ilha não é mais do que uma aparência, uma ilusão dos sentidos e que, assim, pouco valor tem. Ela é a imagem da fragilidade da felicidade terrena para onde, enganosamente, apontavam a Fama e a Glória, em que os homens acreditavam cegamente.
Era à Glória que aspiravam os portugueses depois de se terem tornado famosos com as navegações. Mas o poeta indica, corajosamente, onde ela conduzia o homem: à cobiça, à ambição, à tirania («E ponde na cobiça um freio duro / e na ambição também, que indignamente / tomais mil vezes, e no torpe escuro / vício de tirania infame e urgente / Porque essas honras vãs, esse ouro puro, verdadeiro valor não dão à gente»). (...)
in Teresa Bernardino, «Ensaios Literários e Críticos», Universitária Editora, 2001, pp. 33-35.



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