domingo, 2 de junho de 2024

APRESENTAÇÃO do livro IMAGENS PARA ALCANTARILHA de Teresa Ferrer Passos



Na aventura de trazer até ao mundo tudo o que guardámos ciosamente, aqui deixamos mais umas páginas inscritas em instantes de memória e emoção... 

No dia 25 de Maio de 2024, realizou-se, integrado na festa de aniversário da Associação para a Defesa do Património Cultural e Natural de Alcantarilha, este evento de natureza literária, de cariz acentuadamente poético. Memória de alcantarilhenses,  louvores aos campos e à sua flora ancestral, surgiram nestas páginas com o título de IMAGENS PARA ALCANTARILHA. Aqui deixamos algumas fotos gentilmente cedidas pelo Doutor Nuno Campos Inácio:

Abordagem pela autora do conteúdo temático de
"Imagens para Alcantarilha"



O Dr. Sérgio Brito lendo o Intróito de 
Manuel Neto dos Santos inserido na obra.


 

A autora da obra com seu marido,
o poeta Fernando Henrique de Passos



A assistência atenta às palavras sobre o livro 



TFP autografando um exemplar ao leitor


INTRÓITO

 Por Manuel Neto dos Santos[1]

 

Na génese das coisas, o silêncio é a casa do poema. Assim substanciados o verbo, a origem, o caminho, o destino. O poema é sempre rocha sedimentar estratificada pelo tempo, nesse lugar das memórias, nesse espírito do lugar, nesse genius loci, locus amoenus de quem somos. A leitura da poesia de Teresa Ferrer Passos remete-nos para esse recanto exacto e diluído, esse lugar da casa, do espaço, do caminho. Encontramos na poesia desta autora o apaziguamento e o passo demorado, sofrido, mas ainda assim feliz, pela ”revelação”. Estamos perante uma compilação de poemas feitos de “regressos” a que a matriz cristã empresta o tom de litúrgica serenidade. Para cada dia que se ergue como fronteira, a poesia tem essa força discreta de derrubar o mutismo da existência, tornando-se, ritmo, voz, cadência, invocações expressadas em verso. Perpassa, por toda esta obra, o visualismo narrativo; repouso breve e movediço, uma janela a bater na ventania…

Há, em todo este livro de poemas, uma paz insuspeita, um bucolismo de perfumes esparsos, a audição do canto dos grilos, numa ruralidade tão distante do bulício da “grande cidade”. O legado da memória transmuta-se numa imortalidade como quem habita o brilho intenso da frágil flor, a singeleza como único caminho na recorrente amarga sensação da ausência. Alcantarilha; aldeia ao Sul. A cal, a chuva de calor estival, o ar pesado, numa expressão antitética de máximo impacto de recurso estilístico quando a sensibilidade da poetisa almeja “um gole de água fresca”, o verso inicial saciando a, por vezes, árida travessia de existir. Todo este livro tem, no seu âmago, uma saudosa étima memorabilia simbolicamente retratada numa fotografia forrada de amanhã.

Mais do que passado, estamos perante versos de porvir. Há, em toda esta obra, uma (in)temporalidade evocativa, um humanismo puro, um olhar de assombro magoado perante o “desconcerto” do mundo. O eterno versus a vulnerabilidade da terra. O espaço físico da aldeia remete a autora para essa outra “revelação” das portas sem fechadura, das janelas como nesgas estreitas quando o tempo dolente se arrasta na melancolia dos minutos. Ao Sul. O azul das aves, o sol a rodos na sua pujança mediterrânica a lembrar labareda insuspeita. Regressa o olhar de quem escreve numa nova liturgia, no espaço vértice da luz, no sacro cálice da flor da romãzeira. Casto é o tempo, a lembrar a folha em branco aguardando o poema numa visitação apaziguadora, vencendo imagens de revoltos temporais. A aldeia tem esse dócil palpitar e a poetisa ostenta um rosto (ainda) de criança, perfil de quando o rosto era todo ele iluminado pelo espanto. Nas íngremes variáveis dos dias, a poesia assegura -nos que são possíveis os paraísos. Basta tão somente que nos deixemos guiar pela audácia a cada hora, a cada encruzilhada de uma nova estrada. Perante os trilhos estreitos, perante os caminhos apenas enunciados, na aldeia desfralda-se a noite no vagar das sombras; aldeia sem trincos nas portas.

A poesia de Teresa Ferrer Passos, na sua imagística pessoal, fala-nos do fluir do tempo narrado, e vivido, que as mãos nos enruga e o olhar nos entristece e nos irmana de todas as solidões do mundo. Escrever é movimento furtivo e altaneiro quando de nós nos despedimos para fazer todo o sentido na sensibilidade de quem nos lê. O colorido azul-rósea visto pela poetisa sugere-nos um ocaso em Alcantarilha, aldeia – presépio, das ruas estreitas com as estrelas por luzeiros. A terra, a lida da terra e a sua odorífica e adocicada generosidade; perfume dos figos, e das alfarrobas.

Na génese das coisas, Teresa Ferrer Passos acende a candeia da memória feita distância mas, agora e sempre, retorno esvaziando de sentido a solidão. Em suma: Alcantarilha. A luz intensa sobre a cal, a casa a lembrar o fragor de um regato quando lá fora o canto das cigarras nos assevera a secura, a tocha ardente da canícula de um Verão intenso. Alcantarilha, num vergel, a cor fascinante das laranjas. “Lugar da ponte pequena”, das extensas e largas noites narradas por lendas e fantasias. Assim nos é descrita a aldeia, de forma sublime, por Teresa Ferrer Passos numa singela visão do zumbir de abelhas laboriosas, contrariando a canseira impertinente de existir para que o poema seja, em si mesmo, a plena, visual e melódica fertilidade.

 

Monte Boi, 4 de Abril de 2024

 



[1] Poeta (40 obras publicadas), tradutor (24 obras) e declamador. Nasceu em Alcantarilha (Silves), em 1959. Figura incontornável na moderna poesia portuguesa, recebeu recentemente o Prémio Mérito Municipal – Literatura (2023), atribuído pela Câmara Municipal de Silves (Nota da autora).


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