quarta-feira, 19 de junho de 2024

 Acerca dos perigos da Inteligência Artificial

Não tenhamos medo porque a espontaneidade humana, as experiências diversificadíssimas que se vivem, a infinita diversidade de personalidades que cada pessoa representa, as geografias físicas e sociais dos milhões de homens e mulheres, estão muito para além de tudo o que se defina por uma Inteligência Artificial.
19/6/2024
Teresa Ferrer Passos

terça-feira, 18 de junho de 2024

ETÉREO POETA


                           A Luís Vaz de Camões,
                           no V Centenário do seu Nascimento


na incerta data celebramos Camões com arte branda. 
Com que arte, nós aprendizes de poesia,
nós que nos achamos vates e somos insignificantes,
nós apagados da certa palavra,
nós cheios de vãs eloquências,
nós com os louros a ofuscar-nos a visão?
nós, a olhar o mestre, nós, relendo o genial poeta,
aquele que já cruzava os mares tumultuosos
da poesia maior insubmissa sem rival,
bem dentro das entranhas de sua enternecida mãe.
Nós, aqueles que lhe queremos suceder neste século.
Nós, a crivar as artes do imaginoso humano
com o fantasma da novidade, tremenda e amesquinhante
inteligência só rica em artifícial moldura?
Luís Vaz de Camões, tríade auspiciosa
a vibrar melodiosos hinos e louvores
numa voz sonorosa e ardente como fogo.
A escrever a esplêndida oratória sobre a história 
fulgurante destes a quem chamou Os Lusíadas,
herdeiros dos ousados Lusitanos.
Camões, o século de Quinhentos atravessou
com estudo vastíssimo, 
sua força de alma seguindo sem cansaço,
tudo assente no apego à terra estreita mas luminosa,
a vislumbrar as águas transparentes
de um rio de tantas brumas,
o Tejo, esse rio maior, a penetrar o além,
marítima frente de impiedosas ventanias.
Toda a vasta distância se encurtava
nas correntes imprevistas ante a vontade de vencer 
a pequenez da terra, a pobreza da mesa,
o destino parco e ignoto de todo um povo.
Camões, com a beleza nos olhos perturbante,
espraiou-se pelo vasto mundo
de construções honrosas ainda incertas,
deixou como alto e único testamento  
uma memória de pátria,
pátria só por amor movida,
grande e inteira, poderosa e leve,
quase escondida da Europa
de olhar turvado pela discórdia.
Rompendo  as ondas maiores,
os Lusíadas venceram o Atlântico e o Índico,
mares longuíssimos.
Com hostilidade e sangue recebiam as caravelas
e as naus imprevidentes.  
Que terrível desconfiança dos Lusíadas,
dos icónicos marinheiros,
gente jovem e alegre que desconheciam
e por isso mais temiam.
Na espera de caminhos promissores,
acreditando mais nestes que nos nefastos, 
Camões deixou escrita a gesta
dos seus feitos valorosos:

Qual gente Lusa  capaz de abrir as portas
de um mundo fechado sem saber.
E os navegantes da pequena 
terra de silvados serpentes e montículos,
embarcavam em navetas com velas vestidas de obstinação. 
Partiam  do suave Tejo.
A lusa pátria antiga Portugal se chamava
e circum-navegando a África imensa
o Oriente Extremo, a China grandiosa, tocaram.


10 de Junho de 2024

                                     Teresa Ferrer Passos

quarta-feira, 12 de junho de 2024

NO V CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE LUÍS VAZ DE CAMÕES (1524 ou 1525?)


Camões na prisão em Goa, pintura
de autor desconhecido, de 1556
(in revista «Panorama», nº 43-44, 1972, Hemeroteca Municipal de Lisboa).


«Olhai que ledos vão por várias vias,

Quais rompantes leões e bravos touros

Dando os corpos a fomes e vigias,

A ferro, a fogo, a setas e pelouros,

A quentes regiões, a plagas frias,

A golpes de Idólatras e de Mouros,

A perigos incógnitos do mundo,

A naufrágios, a peixes, ao profundo»

                                  Camões, Os Lusíadas, Canto X


 

"Ontem como hoje, a Pátria não pode ser um conceito vão, com uma significância simbólica, mas um conceito vivo, a que a comunidade vê, todos os dias, a expressão pela sua vontade forte, lúcida e prospectiva. Mas, também, sempre que os interesses sectaristas, de grupo ou de facção, se sobreponham aos do todo e da parte como elemento do todo, a nação será fraca e incapaz de defender a sua independência. A cooperação era a garantia do êxito, como o havia demonstrado D. Afonso III ou D. João I. Porque a realidade que o cercava já não correspondia senão à baixeza moral («glória de mandar», cobiça, fama) e à degradação cultural, Camões concluirá Os Lusíadas só movido, como escreve J. Borges de Macedo (in «Os Lusíadas e a História», 1979), pelo amor da Pátria, cuja história foi "marcada pelo sucesso, que conserva a nação, e venceu todas as tentativas de destruição por forças mais poderosas, mouras, castelhanas ou dissidentes". 

in Teresa Bernardino, «Diário de Notícias», 1/4/1980 e «Ensaios Literários e Críticos», Universitária Editora, 2001, p.109.


domingo, 9 de junho de 2024

 APARIÇÃO DE MARIA


Em cada imagem, há um sentido
próprio, inviolavelmente belo.
A imagem pronta para os olhos ávidos
de coisas, coisas sensíveis,
tão em si mesmas visíveis.
E a imagem é a Senhora
mais luminosa do que o Sol.
Viram os mais pequeninos.
Que força possuiu Maria, a descer do céu!
Que impetuosa ascensão para a Sua morada!
Que imagens a maravilhá-los…
Apareceu Maria, como uma estrela intensa,
distante ou cheia de proximidade?
Que sensação vê-la ali, quase ao lado deles,
a transcendê-los e igual à sua imanência!
Oh aparição de Maria, nesses dias 13
do ano de 1917!
Senhora, cercada de relâmpagos de luz e,
ao mesmo tempo, com palavras iluminadas de fé,
uma fé visível,
tão visível de significados,
como sentiram os olhos das crianças.
Oh imagem bela e perfumada! Oh Maria!
Apareceste como qualquer outra mulher,
apareceste como qualquer outra mãe.
Imagem de Maria a aparecer
aos mais simples do mundo, as crianças.
E, precisamente, conheceram-na,
de viva voz e com os seus próprios olhos!

Teresa Ferrer Passos, «Vimos mesmo a Senhora do Céu», Hora de Ler, 2018, pág.11.



sábado, 8 de junho de 2024

V CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE CAMÕES

 NO INÍCIO DA CELEBRAÇÃO DO V CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA LUÍS VAZ DE CAMÕES a realizar entre 10 de Junho de 2024 e 10 de Junho de 2026, aqui publico um excerto de um artigo datado de 25/8/1976 e assinado pelo meu ortónimo Teresa Bernardino no Jornal Novo.

CAMÕES FALSEADO

Foram publicados pelo Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis alguns cadernos denominados «Juventude e Cultura», que se destinavam, conforme se afirmava na Introdução, a levar às mais vastas camadas estudantis e populares alguns autores menos conhecidos do nosso meio ou cujo acesso era difícil. Escolheram-se, no entanto, autores que embora fossem realmente pouco conhecidos, tinham um valor muito discutível como é o caso de Samora Machel ou Amílcar Cabral, e omitiram-se outras talentosas e significativas figuras das Letras ou da Ciência europeias.
Mais particularmente no que respeita ao nosso país, não se apresentaram os mais relevantes poetas e escritores com a isenção exigida a quem se propôs efectuar tal tarefa, como o prova a publicação de uma peça teatral subordinada ao título Camões.
Formularam-se conceitos imaginosos que deturparam a mensagem do maior poeta português, expressa na sua obra maior: Os Lusíadas. Para se publicar uma peça onde Camões era o centro da acção, era necessária uma fiel interpretação do seu pensamento, livre de qualquer pressuposto, e não desenvolver todo um ambiente que nada tinha de comum com o grande épico, chegando-se mesmo a deturpar a sua verdadeira personalidade. Para além da superficialidade no modo como foi concebida, a peça confere a Camões atributos (bêbedo, hedonista, etc), cujo único fim foi desprestigiá-lo.
O seu autor não analizou previamente as obras de Camões, para depois poder escrevê-la, mas partiu unicamente da imagem que o regime deposto nos oferecia e que era unilateral e, por isso, errónea. Na verdade, se Camões enaltecera os feitos dos portugueses, fizera-o porque eles eram o resultado do saber científico, da coragem e do sacrifício dos navegadores quinhentistas, não deixando de apontar os males que lhes ía trazer a bela aventura ultramarina. Prova clara disso são as sintomáticas palavras pronunciadas pelo Velho do Restelo, que o poeta define como «venerando», «esperto», «honrado» e «sábio só de experiência feito»: « Ó glória de mandar, ó vã cobiça / Desta vaidade a quem chamamos fama! / Que mortes, que perigos, que tormentos, / Que crueldades nelas experimentas».
Tal como no passado, Camões foi vítima dos falsos epítetos daqueles que julgando-se «progressistas», continuam imersos em ideias «obscurantistas» que sobre ele tanto pesaram. Com efeito, só quem ignorava o único, o verdadeiro Camões, poderia supô-lo, como se verifica na peça, um modelo perfeito para representar adequadamente a personagem de um nobre latifundiário, explorador do trabalho do povo, que considerava sem quaisquer direitos, imagem actual do grande capitalista. Camões é, nesta peça teatral, identificado com um indivíduo de espírito classista, que ostenta a sua superioridade, que despreza os pobres, vítimas da sua opressão e que vive, claramente, à sua custa.
Difamou-se o poeta ao fazê-lo personificar um grande e intransigente senhor, pois ele sempre foi pobre e também um explorado porque as suas obras não eram condignamente recompensadas pelo rei (foi-lhe conferida uma pequena tença, que muitas vezes recebia tardiamente).
Por outro lado, um dos episódios de Os Lusíadas que é focado, a Ilha dos Amores, é concebido como representando algo que é uma antítese do seu verdadeiro significado. Para Camões, essa Ilha não é mais do que uma aparência, uma ilusão dos sentidos e que, assim, pouco valor tem. Ela é a imagem da fragilidade da felicidade terrena para onde, enganosamente, apontavam a Fama e a Glória, em que os homens acreditavam cegamente.
Era à Glória que aspiravam os portugueses depois de se terem tornado famosos com as navegações. Mas o poeta indica, corajosamente, onde ela conduzia o homem: à cobiça, à ambição, à tirania («E ponde na cobiça um freio duro / e na ambição também, que indignamente / tomais mil vezes, e no torpe escuro / vício de tirania infame e urgente / Porque essas honras vãs, esse ouro puro, verdadeiro valor não dão à gente»). (...)
in Teresa Bernardino, «Ensaios Literários e Críticos», Universitária Editora, 2001, pp. 33-35.



domingo, 2 de junho de 2024

APRESENTAÇÃO do livro IMAGENS PARA ALCANTARILHA de Teresa Ferrer Passos



Na aventura de trazer até ao mundo tudo o que guardámos ciosamente, aqui deixamos mais umas páginas inscritas em instantes de memória e emoção... 

No dia 25 de Maio de 2024, realizou-se, integrado na festa de aniversário da Associação para a Defesa do Património Cultural e Natural de Alcantarilha, este evento de natureza literária, de cariz acentuadamente poético. Memória de alcantarilhenses,  louvores aos campos e à sua flora ancestral, surgiram nestas páginas com o título de IMAGENS PARA ALCANTARILHA. Aqui deixamos algumas fotos gentilmente cedidas pelo Doutor Nuno Campos Inácio:

Abordagem pela autora do conteúdo temático de
"Imagens para Alcantarilha"



O Dr. Sérgio Brito lendo o Intróito de 
Manuel Neto dos Santos inserido na obra.


 

A autora da obra com seu marido,
o poeta Fernando Henrique de Passos



A assistência atenta às palavras sobre o livro 



TFP autografando um exemplar ao leitor


INTRÓITO

 Por Manuel Neto dos Santos[1]

 

Na génese das coisas, o silêncio é a casa do poema. Assim substanciados o verbo, a origem, o caminho, o destino. O poema é sempre rocha sedimentar estratificada pelo tempo, nesse lugar das memórias, nesse espírito do lugar, nesse genius loci, locus amoenus de quem somos. A leitura da poesia de Teresa Ferrer Passos remete-nos para esse recanto exacto e diluído, esse lugar da casa, do espaço, do caminho. Encontramos na poesia desta autora o apaziguamento e o passo demorado, sofrido, mas ainda assim feliz, pela ”revelação”. Estamos perante uma compilação de poemas feitos de “regressos” a que a matriz cristã empresta o tom de litúrgica serenidade. Para cada dia que se ergue como fronteira, a poesia tem essa força discreta de derrubar o mutismo da existência, tornando-se, ritmo, voz, cadência, invocações expressadas em verso. Perpassa, por toda esta obra, o visualismo narrativo; repouso breve e movediço, uma janela a bater na ventania…

Há, em todo este livro de poemas, uma paz insuspeita, um bucolismo de perfumes esparsos, a audição do canto dos grilos, numa ruralidade tão distante do bulício da “grande cidade”. O legado da memória transmuta-se numa imortalidade como quem habita o brilho intenso da frágil flor, a singeleza como único caminho na recorrente amarga sensação da ausência. Alcantarilha; aldeia ao Sul. A cal, a chuva de calor estival, o ar pesado, numa expressão antitética de máximo impacto de recurso estilístico quando a sensibilidade da poetisa almeja “um gole de água fresca”, o verso inicial saciando a, por vezes, árida travessia de existir. Todo este livro tem, no seu âmago, uma saudosa étima memorabilia simbolicamente retratada numa fotografia forrada de amanhã.

Mais do que passado, estamos perante versos de porvir. Há, em toda esta obra, uma (in)temporalidade evocativa, um humanismo puro, um olhar de assombro magoado perante o “desconcerto” do mundo. O eterno versus a vulnerabilidade da terra. O espaço físico da aldeia remete a autora para essa outra “revelação” das portas sem fechadura, das janelas como nesgas estreitas quando o tempo dolente se arrasta na melancolia dos minutos. Ao Sul. O azul das aves, o sol a rodos na sua pujança mediterrânica a lembrar labareda insuspeita. Regressa o olhar de quem escreve numa nova liturgia, no espaço vértice da luz, no sacro cálice da flor da romãzeira. Casto é o tempo, a lembrar a folha em branco aguardando o poema numa visitação apaziguadora, vencendo imagens de revoltos temporais. A aldeia tem esse dócil palpitar e a poetisa ostenta um rosto (ainda) de criança, perfil de quando o rosto era todo ele iluminado pelo espanto. Nas íngremes variáveis dos dias, a poesia assegura -nos que são possíveis os paraísos. Basta tão somente que nos deixemos guiar pela audácia a cada hora, a cada encruzilhada de uma nova estrada. Perante os trilhos estreitos, perante os caminhos apenas enunciados, na aldeia desfralda-se a noite no vagar das sombras; aldeia sem trincos nas portas.

A poesia de Teresa Ferrer Passos, na sua imagística pessoal, fala-nos do fluir do tempo narrado, e vivido, que as mãos nos enruga e o olhar nos entristece e nos irmana de todas as solidões do mundo. Escrever é movimento furtivo e altaneiro quando de nós nos despedimos para fazer todo o sentido na sensibilidade de quem nos lê. O colorido azul-rósea visto pela poetisa sugere-nos um ocaso em Alcantarilha, aldeia – presépio, das ruas estreitas com as estrelas por luzeiros. A terra, a lida da terra e a sua odorífica e adocicada generosidade; perfume dos figos, e das alfarrobas.

Na génese das coisas, Teresa Ferrer Passos acende a candeia da memória feita distância mas, agora e sempre, retorno esvaziando de sentido a solidão. Em suma: Alcantarilha. A luz intensa sobre a cal, a casa a lembrar o fragor de um regato quando lá fora o canto das cigarras nos assevera a secura, a tocha ardente da canícula de um Verão intenso. Alcantarilha, num vergel, a cor fascinante das laranjas. “Lugar da ponte pequena”, das extensas e largas noites narradas por lendas e fantasias. Assim nos é descrita a aldeia, de forma sublime, por Teresa Ferrer Passos numa singela visão do zumbir de abelhas laboriosas, contrariando a canseira impertinente de existir para que o poema seja, em si mesmo, a plena, visual e melódica fertilidade.

 

Monte Boi, 4 de Abril de 2024

 



[1] Poeta (40 obras publicadas), tradutor (24 obras) e declamador. Nasceu em Alcantarilha (Silves), em 1959. Figura incontornável na moderna poesia portuguesa, recebeu recentemente o Prémio Mérito Municipal – Literatura (2023), atribuído pela Câmara Municipal de Silves (Nota da autora).