terça-feira, 9 de maio de 2017

Um romance a refletir sobre o materialismo contemporâneo [1]


  
Uma “fantástica viagem pelo mundo do irreal” é a viagem do cientista Taoj no romance que intitulei Um Cientista e uma Folha de Papel em Branco” (Chiado Editora, 2015). A personagem Taoj é, nesta narrativa, o protótipo do homem contemporâneo, enlaçado nos liames das ideologias materialistas propagadas por uma plêiade de intelectuais. Desde o século XVIII, o racionalismo impõe-se e avança cada vez com mais poder de infiltração nas camadas populares.

Os caminhos da ciência prolongam-se pelos caminhos do romancista como pelos dos homens de ciência e da política. O descrédito da Igreja Católica torna a religião como um feudo de crendices e superstições. O marxismo infiltra-se assim com mais facilidade e derruba os seus bastiões populares. No século XIX as ideologias materialistas conquistam terreno a olhos vistos. O cristianismo soçobra ao perder o seu verdadeiro sentido, ofuscado por alguns dogmas da Igreja Católica.

Quer o socialismo ateu, quer o liberalismo são materialistas. Neste ponto, recusam a dimensão espiritual do Homem que tem a ver com sofrimento, com o mistério de Deus, com a felicidade eterna e não efémera, com o amor no coração de cada homem e não com o amor defendido pelo socialismo, o amor em abstrato e global. A passos largos, acabam ambos por caminhar no mesmo sentido. A prova está na sociedade contemporânea dos nossos dias. 

Nesta mundialização, que se vem alargando a grande parte do mundo, o dinheiro é a solução. O dinheiro é o fulcro de todos os sentidos das revoluções, as proletárias e as das elites das classes média e alta. O dinheiro é o cerne da luta dos materialistas ateus e defensores do estado socialista e é, igualmente, o cerne da luta da ideologia do liberalismo económico, na feição dos liberais e ultra-liberais.

Entre a 2ª metade do século XX e este princípio do século XXI estão erguidos os alicerces da felicidade terrena levantada pelo socialismo proletário. Os mesmos suportes erguem-se com o liberalismo político e económico. Da Europa Ocidental à Europa de Leste, da América à China, em parte a África, estas duas fações, na aparência contrárias, avançam no mesmo sentido: o materialismo ateu da vida contemporânea.

Formou-se uma mentalidade materialista que hoje prospera com a força da imagem ao serviço do consumismo desenfreado da maioria. A fé no cristianismo esconde-se em minorias cheias de medo. A periferia dos excluídos pelo espírito, silencia-se, esconde-se. Os intelectuais vitoriosos exultam na venda dos seus produtos literários, científicos e artísticos sem se distinguirem dos objetivos do materialismo ateu. Têm ao seu serviço os meios de comunicação social e as redes internéticas. A internet contém a pedagogia do materialismo e do ateísmo que o secunda. Tudo gira à sua volta.

Neste romance, procurei espelhar o peso, na sociedade, do racionalismo materialista vitorioso. Simboliza-a um ecrã de computador que dá todas as pistas ao cientista Taoj. A folha de papel em branco significa o vazio do tudo é permitido, mas não vislumbra a felicidade prometida. Na vigília, no sono ou no sonho, Taoj não sai do mundo fictício onde a sociedade materialista contemporânea o lançou.

Tudo o resto, o amor à família não passa pelo seu coração, o amor aos outros é-lhe estranho, porque, para ele, os outros são sempre os outros. Como pode amá-los de verdade, se estão separados pelo muro do egocentrismo? Poderia perguntar Dostoievski, o autor de Os Irmãos KaramazovPara Taoj, o mundo da matéria reduz-se ao mundo do corpo a que falta a sua cabeça. Procura-a sem cansaço, porque só o seu corpo tem sentido e se lhe falta uma parte é o desespero. A personagem Taoj sente-se, como o homem contemporâneo, esmagado pelo fracasso do presente, quando lhe prometem a felicidade, uma felicidade ao seu alcance e a frustração desespera-o como se fosse igual à morte.

Perdido em códigos, endereços, programas, estradas, recursos do ecrã, só descobre becos sem saída ou muros alheios à felicidade. A solução parece estar sempre à vista, sempre à mão de semear, mas a solução é falsa porque a carne está transformada em ídolo e recusa sequer uma espreitadela para o espiritual. Os paradoxos da vida humana tornam-se comuns a todos porque todos esqueceram que tinham alma e assim aceitam costumes por onde passa o sórdido ou o abjecto.

A cabeça perdida representa a razão, única realidade em que Taoj acredita: «Cheio de horror de si e do seu mal-estar-no-mundo» (p.42). Mesmo quando encontra a razão, depois de várias aventuras, afinal, numa terrível imobilidade, não encontra a felicidade. As mil e uma imagens oferecidas pelo ecrã, o diálogo nas redes internéticas acaba por se revelar fictício ou falso. E grita: «o inferno está aqui, aqui dentro de mim (p.103)». Numa procura infindável, cai na procura impossível: os mistérios maiores de um Criador que não sabe nada sobre a sua própria Origem.

Na 2ª parte como que se inicia um outro romance: a procura de Taoj vai transformar-se na procura de um Deus que, como ele e à sua imagem, procura a sua felicidade. Uma ambição mais forte ainda. O ecrã das imagens dos códigos, das autoestradas internéticas continua a guiar Taoj, indiferente aos absurdos em que se encaixa a sua sede impossível de suster o desejo de desvendar todos os mistérios, mistérios que vê como ilusórios porque só são mistérios enquanto não se descobrem.

Indiferente aos valores do espírito que eleva a matéria e a sustenta até à eternidade, mesmo a carregar o peso das imagens dos «corpos amolgados pelos bairros da lata e os uivos das mulheres agredidas e a criança violentada como se fosse o lôdo dos pântanos» (p.270), inicia a nova caminhada centrada em Alfa, o Princípio Originário. Alfa representa o Deus Criador num mundo de nada, em que não vive, e em que a mudança é um atentado.

É ainda «na matéria em ascensão que Alfa descobre asas abertas para as distâncias do impossível» (p.294). O emergir da matéria com todos os seus absurdos (o big bang) é a saída para mais uma vez se enaltecer o mundo nascente da matéria. Na idolatria da matéria, todo o edifício do mundo do pensamento materialista ateu se ergue como se não tivesse limites, como se fosse o único possível e o único a que se deve ascender até uma vida só assente na felicidade terrena, assente no material.

As teorias revolucionárias, sem a dimensão metafísica do Homem, como pensava Dostoievski, não oferecem, acreditamos nós também, uma felicidade como o epílogo de todos os prazeres, prazeres a multiplicarem-se sem contenção e na ausência de uma porta do espírito para ultrapassar os limites da matéria.      

                                                        Teresa Ferrer Passos




[1] Texto escrito pela autora de Um Cientista e uma Folha de Papel em Branco, pouco antes da sua apresentação na Fnac do C. C. Colombo, em Lisboa, a 10 de Outubro de 2015. A apresentação esteve a cargo do Professor Doutor António Cândido Franco da Universidade de Évora.

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