quinta-feira, 29 de outubro de 2020

OS NOSSOS NOMES


Abro os alvéolos da alma,
deixo-me invadir
pelo espaço que existe entre nós dois,
e estou dentro de ti,
embora continuemos cada qual no seu lugar,
em duas cadeiras que se acordam
com as leis que Newton divisou,
tão separadas, tão distantes,
como planetas no espaço sideral.

Mas os nossos corações sorriem juntos,
lembrando um Outubro mais antigo,
o nosso primeiro mês de Outubro,
quando uma palavra tão pequena
se fez então primeira pedra
de um edifício que ambos construímos,
um edifício que um dia estará pronto,
feito de espaços que se encontram,
feito de tempos em uníssono,
feito de portas que se abrem
mas nunca são fechadas,
feito de áleas que conduzem
ao centro de onde brota uma nascente
onde João batizará uma vez mais
e nos dará de novo os nossos nomes
agora temperados no combate,
na luta para erguer o edifício
cujo nome por fim conheceremos.

29/10/2020 (Lembrando o 29 de Outubro de 1993)

                                       Fernando Henrique de Passos

PORTAS SELADAS


na casa da confiança inscrevi as linhas
soletradas pelo tempo e que descobriste em mim.
Foi num dia todo verde e de sol nas alturas.

Com a timidez dos teus olhos,
com os teus passos inseguros, dolentes,
iluminaste, todo coberto de negro, a biblioteca vasta.

As tuas palavras cobertas de silêncio
eram engolidas sem saliva,
sem um frémito vago e não irrompiam as raízes
assentes no teu deserto de interrogações.

na casa da confiança ergueu-se devagar
o ermitério e, dentro dele, abriram-se
as nossas portas seladas.

E fomos renascendo, cada dia,
entre horas impenitentes e agónicas,
e fomos dois nomes, frente a frente,
à procura da secreta estrada do encontro.
29/10/2020
Teresa Ferrer Passos

sábado, 24 de outubro de 2020

Um poema dedicado ao sofrer de Paco, num hospital em Madrid



num tempo, numa hora


                            para Paco

a coragem das almas de amanhã
o vibrar das forças contorcidas
a graça dos gigantes adormecidos
nas entranhas que habitam todo o corpo
exposto à explosão propagada nos lábios derretidos
ainda em tanta lava

24/10/2020

Teresa Ferrer Passos

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

 

 

POESIA A RENASCER NUM LABIRINTO PERDIDO

  

«Aqui é o tempo do dizível»

                                      Rilke, Elegias de Duíno (Nona Elegia)

  

Envolvido no manto das palavras por dizer, defino o livro de Manuel Neto dos Santos, titulado Sob o Signo de Cibele, dado à estampa no ano de 2018. «Aqui é o tempo do dizível», escreveu o poeta alemão Rilke. Todo o dizível é, na verdade, uma linguagem poética que se expõe no discurso de cada verso, de cada sonorização ou de cada assonância, na procura de uma marca, de um compasso inaudito e obscuro, na entoação de cada palavra.

Todas as palavras escolhidas, a romper do silêncio como nunca tivessem sido ditas/escritas, tomam sentidos inesperados, insuspeitos, provocam um caminho, um rumo, uma interrogação ou um real, a ser olhado como um irreal que só podemos afrontar.

Vejamos o poema «Possessio Maris», em que o mar possuído se transforma numa “rosa de sangue” na sua ausência de resposta ao poeta; e o "vazio" assume um lugar cimeiro nessa mesma ausência indesejada. O coração esvaziado até ao fundo “tudo recebe”, como se fosse a salvação, ou a redenção imprevista, mesmo que continue como se significasse apenas “sementes ressequidas”.

Aqui, realçamos o terceiro quinteto, em que o “mar possuído” continua a ser uma deceção, senão mesmo uma ilusão ou até uma perda irremediável. E a escassez torna-se em outro “excesso” que não dá sossego à alma: “tudo é móvel e plural”. Eis o cerne da realidade: a sua pobreza, a sua multiplicidade dispersante, que enevoa os sentimentos, como se estes não existissem.

Assim, só resta ao poeta, “existir nos contornos corporais”, esses sem adequado significado, ao reduzirem-se a uma falsa aparência, indutora de erro e a delir-se de uma essência que não se espelha em mais do que uma realidade de contornos imprecisos e abafados neles próprios.

Como escreveu Wittgenstein, “ficamos sempre pelas palavras, ou melhor, por esta terrível impotência”. Como Manuel Neto dos Santos acentua em «Sob o Signo de Cibele», a palavra do poema coarta, quando não oculta, a voz que se quer ouvir para além de si, para além da dor. Lembro o versos, “Sou ourives do passado” ou “Sou o ardor das feridas já esquecidas” (pp.37) que são a chave de um presente que faz da perseverança a sua guia, e, da viagem dentro do teatro do mundo, a sua recorrente identidade.

E, afinal, “a minha alma é feita de todas as pontas de uma fonte” (p.30). De uma fonte que não cessa a sua procura de uma saída frutuosa, semelhante aos frutos da terra que, na sua escuridão, se tornam forma e gosto e, mais do que tudo, vida generosa e pura. O seu silêncio é o alimento criador, é a sua seiva que constrói, incessante, a repetir o gesto que renova e procria um universo único mesmo que, como diz o poeta, seja “contra as pedras” e com a voz “embriegada de fogo”. Logo a seguir, conclui, com esta imagem mareal: “a espuma deixa / sempre, um pouco de si mesma / sobre o areal” (p.31).

O poeta de «Trovas de um Homem da Terra» (1991), nasceu também na proximidade do Atlântico revolto, como o revela em «Sob o Signo de Cibele» (2018). As cenas em que nos envolve, na leitura destes poemas, sempre a provar a sua costura oficinal ─ como é toda a poesia que se insere na nossa herança poética de oito séculos ─, têm o rumor dos frutos, mas não lhes falta o rumor do mar.

Toda a natureza se digladia nas sombras rasteiras ou na luminosidade dos sentidos, como se a paisagem crescesse no coração do poeta, ávido de sons e de um ruído atordoador, em contrapartida, não fizessem mais que silenciá-lo. Lembro, a finalizar, estes eloquentes versos de poema sem título, com o 1º verso “Abro distâncias entre mim e o mundo (p.55) e que Manuel Neto dos Santos termina, escrevendo: “Abro distâncias entre mim e o dia e sou caudal / da voz que, em mim, já estanco”. A distância abre o caminho e a voz do poeta, cheia de silêncio, aproxima-se do mundo impenetrável e tão aberto.

 

23 de Outubro de 2020

Teresa Ferrer Passos

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

A Obra quase infinita. O Autor, a plenitude infinita.
15/10/2020
                                                                               T.F.P.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

CAMINHOS: Entre os homens numa terra árida (3)


Assunção da Virgem ladeada de anjos músicos
de Gregório Lopes (1490-1550)

«Minha mãe assistia à luta que eu travava naqueles lugares cheios de falsidade e artimanhas. Conhecia a minha luta contra os que vibravam golpes aos mais pobres, sem piedade. Vivíamos num mundo penetrado pela violência. As forças demoníacas estão presentes em toda a matéria e a elas ninguém escapava.

Maria sentiu-se minha mãe ao aceitar a minha incarnação na sua própria carne, conservando eu uma natureza divina. A sua carne e o seu sangue alimentaram-me durante nove meses. Depois nasci. Com o sim de Maria, a humanidade ganhou um plano mais alto, Maria aceitou o plano redentor de Deus. Com o consentimento de Maria, Deus veio ao mundo para vencer o mal, revestindo-se da própria pele do homem.»

Teresa Ferrer Passos, «Jesus até ao Fundo do Coração» (romance), 2016, p. 287.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Nobel da Literatura/2020

Do poema "O poder do cisne" do livro «Meadowlands» (1996) de Louise Gluck (com 77 anos), Prémio Nobel da Literatura/2020, o seu único poema traduzido para português, reproduzimos estes dois versos bem significativos na sua mensagem:

«Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior» 

(In Colectânia Rosa do Mundo - 2001 poemas para o futuro, Assírio Alvim, 2001)

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

CAMINHOS: Entre os homens, numa terra árida (2)


«As gerações humanas tinham esquecido a imagem de Deus. Por este meio, dava-se a conhecer, guiado só pelo amor às criaturas. Esta mulher chamada Maria, no centro de uma epifania era a bendita entre todas as mulheres. A sua disposição para aceitar um tal nascimento, a partir das suas entranhas, estava para além do sentido humano. Eu seria o primeiro ser humano a nascer fora das leis da natureza.
As leis da procriação, que Maria julgava imutáveis iam ser transgredidas pelo próprio Criador. A maternidade santa de minha mãe era apenas um acidente na evolução do mundo humano. Uma honra valiosa demais para ela, mas que estava disposta a assumir como um serviço a Deus e à humanidade.
O Criador de tudo o que existe convidara-a para ser a arca da sua encarnação humana. Deus a tornar-se humano, no corpo de Maria.
Como não havia de ser ditosa, entre todas as mulheres?»

Teresa Ferrer Passos, «Jesus até ao Fundo do Coração» (romance), Chiado, 2016, pág. 36.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

No dia da morte de S.Bruno, 6 de Outubro de 1101

S. Bruno, um santo que se entregou à oração no mosteiro ermítico da Cartuxa, que fundou. Foi uma oração solitária, mas com a plenitude daquele que Vive. Assim, uma oração amplíssima foi obtida apenas com a imagem do Crucificado, como sinal da Vida.
   
6 de Outubro de 2020
Teresa Ferrer Passos

Caminhos: Entre os homens, numa terra árida (1)

O deserto à beira do Mar Morto (/Mar Salgado)

«Eu não envergava vestes bordadas a ouro ou prata, nem mantos incrustados de pérolas, rubis ou esmeraldas. Os rabinos afamados e os doutores mais ilustres, os poderosos da sociedade, não acreditavam na minha identificação com Deus. Que blasfémia, que atrevimento, diziam uns aos outros. E crivavam-me de perguntas ardilosas para me desprestigiar.

As minhas atitudes abertas, destemidas, a minha piedade pelos impuros, a minha predileção pelas crianças, o meu cuidado com os mais desprotegidos, não os impressionava a meu favor. O meu carinho pelos doentes e a minha atenção aos mais pobres, aos que eram perseguidos injustamente, abalava-os. A minha preocupação com as vítimas da miséria e dos abusos do poder levava-os até a acusarem-me de armar falácias. Escandalizavam-se. Os meus discípulos, alguns de aspeto um pouco grosseiro e outros desconhecendo os modos pelos quais se regiam os senhores de bom nome, peregrinavam comigo sujeitando-se aos comentários que os atingiam, sem me abandonarem.»

Teresa Ferrer Passos, Jesus até ao Fundo do Coração (romance), 2016, pág. 244.

domingo, 4 de outubro de 2020

Um Poema Inédito



imagem de outono 


um vermelho negro muito especial
começa a tingir as folhas
perturbadas de sol
e cheias de incompletude 
numa pobreza silenciosa. flutuam ao vento forte.
é outono. solta-se o poema do real
que só pode ser outro.
há doçura nelas e um sol mudo
arde todo no seu dentro.
o estrondo do mar nos rochedos agita-as.
tombam rápidas. não sabem se o mar está dentro
dos seus gemidos de que ninguém suspeita.
escrevem poemas ou perfumes? não sei dizer.
só sei que nos levantam sem saber
a nós caídos a seu lado e inteiros.
e perdidas rastejantes começam a traçar no ar
uma imensa imagem de vida.
perplexos ficamos. uma vez ainda. 

4 de Outubro de 2020
Teresa Ferrer Passos
Big Bang

TELEPATIA

Pré-história das ideias...
Vestígios telepáticos
Do velho Big Bang
Percorrem-nos as veias
Fervilham-nos no sangue.
Já fomos como um só,
Unidos num só ponto,
E ligam-nos memórias
Que escavam galerias
Buscando o reencontro.

Fernando Henrique de Passos, Ecos Abaixo do Audível, Hora de Ler, 2020, p.16.


Coments no Facebook (2-3 Outubro de 2020):

«Fernando, uma boa síntese, com linguagem poética, "Do velho Big Bang"!»
T.F.P.

«Lembro a obra "Para Além do Planeta Silencioso" de C. S. Lewis»
F.H.P.

«C.S. Lewis, um autor fabuloso!»
 T.F.P.

«E este é o primeiro livro de uma trilogia fabulosa. O planeta silencioso é o planeta Terra, mergulhado na noite do materialismo, que impede os homens de ouvirem a "música do universo".

A minha poesia tenta, muito modestamente, levar a ciência para além da cegueira do materialismo em que se deixou encerrar.»
F.H.P.