quinta-feira, 19 de abril de 2012

Acerca de "O Último Segredo" de José Rodrigues dos Santos

O ÚLTIMO SEGREDO

OU UMA FICÇÃO PARA ATACAR O CRISTIANISMO?
«O céu e a terra passarão,

mas as Minhas palavras não passarão.»
Mt 24, 35

«Não crês que Eu estou no Pai e que o Pai está em Mim?
As palavras que Eu vos digo, não as digo de Mim mesmo
mas o Pai que está em Mim.»
Jo 14, 10



Não sei se o cristianismo encerra O Último Segredo da religiosidade humana. Mas, se assim não é, pelo menos parece encerrar qualquer sedução frequente nos escritores contemporâneos, não para o seguirem, mas para o contestarem. Inundados de temáticas variadíssimas num mundo tão globalizado como o nosso, parecem ter muita dificuldade em não se inspirar nas tramas eclesiais, nos enredos evangélicos e nas narrativas do judaísmo para a construção de uma parte significativa dos seus romances. Trata-se do caso de José Rodrigues dos Santos. Tem em vista ser um atento observador visual do fenómeno cristão, mas numa captação demasiado literal e, por outro lado, distante do ficcional. Trata-se de uma narrativa empobrecida pelo predomínio do facto sobre a imaginação, envergando um simplismo inesperado. A ausência de um fio condutor essencialmente romanesco – e a sua substituição por um fio narrativo de uma única personagem, Tomás Noronha –, fazem deste romance um “pastiche” do género literário designado por romance.


1. A obra, apresentando-se como ficcional, transmite apenas a ideia de que o autor procura, no essencial, contestar a autenticidade dos escritos evangélicos e dos primeiros cristãos. As suas arremetidas têm nitidamente em vista escandalizar os cristãos e humilhar a sua Igreja. Escandalizar é, sem dúvida, uma táctica de vitória imediata. Com as afirmações da personagem “Tomás Noronha”, um historiador frequentador da Biblioteca do Vaticano, em Roma, o autor de O Último Segredo desvincula-se da sua argumentação ao dizer que escreveu um romance e, ao mesmo tempo, assume na personagem Noronha a sua própria argumentação ao longo desta narrativa (como afirma na entrevista ao Telejornal da RTP 2 por ocasião do lançamento de O Último Segredo).

O que José Rodrigues dos Santos (JRS) tenta provar é, no fundamental, a falta de credibilidade de Jesus, dos Apóstolos e dos que os seguiram, desde os primeiros séculos (após a crucificação). Damos só alguns exemplos retirados de O Último Segredo: «Os textos exprimem a intenção e os condicionalismos dos seus autores (…); Os autores dos Evangelhos (…) pretendiam glorificá-lo [a Jesus] e persuadir outras pessoas de que ele era o Messias» (p.51); «A história da adúltera é forjada» (p.55); «foi um episódio acrescentado por escribas» (p. 90); «a ressurreição é outra fraude» (p.82), «os versículos da ressurreição de Jesus estão ausentes dos dois melhores e mais antigos manuscritos» (p.94); «esta narrativa não pertence ao texto original e foi acrescentada por um escriba posterior» (p.94), etc. Apenas estes exemplos, podendo multiplicar-se, bastam para vermos o que move JRS, com uma evidência que não se deixa ficar por pormenores: JRS acusou de fraudes e de fraudulentos os documentos em que se fundamenta a fé cristã (não exclusivamente de inspiração católica). Mas, mais do que isso, chamou «parolo de província» (p. 278) a Jesus e «parolos e analfabetos» aos Apóstolos porque eram duma insignificante terra, a Galileia. E «a própria família de Jesus achava que ele não batia bem da cabeça» (p. 313). Depois, acentua: «A vida e os ensinamentos de Jesus não fundaram o cristianismo. Provavelmente nunca lhe passou pela cabeça criar uma nova religião» (p.283). E, mais adiante: «O cristianismo não se funda na vida e nos ensinamentos de Jesus mas na sua morte» (p.283)


2. De facto, JRS não se separa da predominante mentalidade do mundo contemporâneo, não está longe das rupturas com o espaço do religioso e das dúvidas lançadas sobre a verdade dogmática do cristianismo. JRS insere-se na corrente da supremacia do relativismo que a ciência consolidou no século XX. A religiosidade, a mística, a filosofia tornaram-se saberes estranhos, contrários mesmo ao certo saber científico. As ideias de absoluto pressupostas por Platão e expressas na Crítica da Razão Pura por Kant estão submersas sob o peso de uma tecnicidade aplicada ao mental, de uma fenomenologia tão dominadora como desesperada. E tudo isto se esfuma nas ideologias niilistas ou do nada, implantadas no século XIX e que alcançam o apogeu no século XX.

Ao abrir os jogos perigosos da polémica à volta da crença e da descrença, hoje, JRS não consegue, com as inúmeras provas dadas até à exaustão pela personagem Noronha, provar seja o que for. A sua argumentação não é filosófica nem teológica; contudo, procura ser histórica. Mas, também nesta alternativa falha o seu objectivo e a sua táctica não é convincente. Com esta última área do conhecimento, a História, JRS julga ter descoberto a sua mais poderosa arma de destruição da fé cristã, derrubar a fé atacando as suas estruturas fundamentantes e fundamentais.

De facto, JRS tenta mostrar até à exaustão que são poderosas as provas dadas pela personagem Noronha neste romance, em que o autor faz jogos de historiografia, mais do que um criativo discurso da arte do romance. Baseando-se sempre nos próprios testemunhos bíblicos, JRS acredita ser capaz de pôr a nu a falsidade da pedagogia de Jesus, pedagogia olhada como leviana e insensata. Numa palavra, ao falso testemunho dos seus adeptos, aliaram-se, como acentua JRS, os fraudulentos testemunhos dos seus continuadores. Para o autor de O Último Segredo, uma infame doutrina foi edificada por escribas fraudulentos, por teólogos da sofisticação e por copistas adulteradores. Os Evangelhos e as Cartas de S. Paulo, os mais antigos testemunhos sobre a vida de Jesus são, segundo JRS, na maior parte, documentos falsos sem a mais pequena réstia de honestidade.


3. A História conduz à verdade, as fontes históricas conduzem à verdade, pensa JRS. Logo, como se isto fosse um silogismo, JRS considera que essa é a sua arma de arremesso mais poderosa. A “personagem-historiador Noronha” anda na Biblioteca do Vaticano à procura da verdade. Para descobrir a verdade é que existem as fontes e os mananciais de obras historiográficas acumuladas ao longo de milénios. Os meios para atingir os seus fins parecem inserir-se na optimização. Contudo, JRS, pouco versado nas difíceis tarefas do historiador, parte de uma premissa errada: a de que a história é a ciência que leva à verdade.

JRS, com a ajuda de vários teólogos e historiadores contemporâneos, acredita que toda a verdade foi desmascarada e os fraudulentos desocultados por eles. Ora, os historiadores imparciais sabem que a História não procura a verdade, mas as verdades de cada época, a verdade dos grupos humanos antagónicos de outros, a verdade de estruturas políticas, económicas ou sociais, a verdade de estratos de dirigentes ou a verdade de massas populares com perspectivas bem diferenciadas ou coetâneas numa determinada conjuntura. Em consequência, tão pouco a história é uma garantia segura de verdade.

Só um mau historiador parte de perspectivas preconceituosas em que só pretende provar aquilo que tem em vista. Pode fazê-lo, sem dúvida, mas falha no seu ofício. O bom historiador nada tenta provar, sob pena de ir procurar argumentos a favor da sua tese e não argumentos para se aproximar do sentido próximo, o mais próximo possível, dos factos tal como eles se verificaram. A verdade de um facto, de uma conjuntura ou de uma estrutura social, varia consoante as fontes que chegaram até nós (e a sua margem mais ou menos maior de idoneidade).

Nesta narrativa ficcional, JRS introduz uma personagem (Tomás Noronha) que serve o seu objectivo de introduzir na narrativa (aparentemente ficcional) um historiador perfeito, ou seja, um historiador modelo ou ideal. Ao vestir-se de historiador modelo, praticamente infalível, Noronha não tem opositores ao seu nível. Mas ele não é mais do que o próprio autor de O Último Segredo. Só que a JRS falta a objectividade e a imparcialidade que o bom historiador deve ter na busca do sentido dos documentos e da sua autenticidade. A personagem que dialoga com Noronha é uma inspectora policial (Valentina) que nada contrapõe (apenas se espanta, muitas vezes) às suas afirmações como se estas fossem indiscutíveis e, portanto, inatacáveis.

O autor de O Último Segredo cai, assim, numa falaciosa argumentação sem a consistência que tal cometimento lhe exigiria. Vejam-se estas breves passagens: «Os autores destes textos não testemunharam coisa nenhuma» (p.144); «Dos vinte e sete textos do Novo Testamento, apenas oito são de autoria segura» (p.145); «os seus seguidores (…) puseram-se a atribuir a Jesus elementos que constavam das antigas profecias, de modo a convencer os outros judeus» (p.166); «Tudo é reminiscente do Antigo Testamento!», «mesmo os episódios da vida de Jesus» (p.169); «A fraude da divindade de Jesus» (p.183); «Paulo e Pedro aparecem até a sugerir que, em vida, Jesus nem sequer era Filho de Deus» (p.189); «Este é também o símbolo da Santíssima Trindade (…) a mais bizarra das invenções do cristianismo» (p.195), etc., etc.

A argumentação – presente nas intervenções descabidas do contexto romanesco da personagem Noronha – imbuída daquilo a que Noronha chama as provas (uma catadupa de episódios bíblicos onde procura sempre e, ao acaso, múltiplas contradições e falsificações sem qualquer estudo objectivo das mesmas) vai conduzi-lo, de acordo com o narrador (JRS ou a “personagem Noronha”), automaticamente, à verdade. O historiador Noronha ao persuadir a inspectora Valentina da ausência de idoneidade e de uma honestidade mínima dos Evangelhos cristãos desvia-a continuamente daquilo que ela pretende investigar e que é um crime cometido sobre uma historiadora também da biblioteca do Vaticano. E este rumo que é dado à narrativa é incoerente num discurso ficcional. O desenvolvimento ficcional, se não houvesse estas quebras contínuas do discurso narrativo (as provas irrefutáveis, sempre, e fiéis abonatórias da verdade), teria uma lógica. Assim, perde-a irremediavelmente para o mal da arte do romance em causa.


4. A sucessão de crimes cometidos ao longo da narrativa, induz o leitor a desconfiar de que a responsabilidade dos vários crimes cometidos ao longo deste romance (assim estranhamente denominado), seja da responsabilidade da Igreja Católica. Para JRS, a Igreja teme a descoberta das terríveis fraudes que os seus membros, desde os autores dos Evangelhos (igrejas locais seguidoras de Mateus, Marcos, Lucas e João que deram aos textos os seus nomes), esconderam sempre ao longo dos séculos.

Se o “historiador Noronha” não obtém da investigadora policial contestação (apesar de ela própria ser cristã católica), mas apenas anuência (aceita, apesar de se mostrar estupefacta com a sucessão de provas) às suas palavras acusatórias de ausência de veracidade nos factos narrados pelas fontes evangélicas, então acaba por cair num monólogo de erudição relativamente ao qual a inspectora não tem conhecimentos para contrapor seja o que for. O “historiador Noronha” vai apresentando provas indiscutíveis, completamente irrefutáveis porque ninguém lhe faz uma única pergunta que ponha em causa a sua omnisciência sobre a documentação estruturante do cristianismo. Tudo o que ele diz não sofre oposição. Ele está cheio de certezas sobre a desocultação dos enganos veiculados por um corpo eclesial desonesto, enganador dos incautos que nele vão acreditando.

A verdade é que “a personagem Noronha”, com as suas provas, representa o próprio JRS ao longo de toda a narrativa. Sob a capa de estar a escrever uma ficção, o autor transvestiu-se de historiador “preparado” até à exaustão para denunciar, com a força das muitas provas, uma crença construída, como ele considera, sobre falsidades incontáveis, e em que tantos cristãos se têm deixado enredar. Neste contexto, estranhamos como JRS se deixou ele próprio enredar na série de provas de sensatez duvidosa e nos inconsistentes argumentos do “historiador Noronha” perante um adversário que representando um cristão, nada parece saber de cristianismo (a quase amorfa “inspectora Valentina”).


5. A culminar a espantosa sucessão de provas, JRS, através daquele omnisciente “historiador Noronha”, sempre sem dúvidas de espécie alguma, ataca a fé cristã com passagens evangélicas a “provar”, sempre a “provar” que, entre outras acusações, Jesus era violento e pregava uma moral retaliadora. Ora isto não se identificaria nunca com a moral das igrejas cristãs que lhe prestam culto como o Deus que encarnou para salvar os homens do mal que eles próprios vão construindo através de pensamentos e actos. De facto, se nos Evangelhos aparecem expressões de ira e de condenação para os maus usadas por Jesus, estas expressões não são mais do que formas de persuadir os homens que se conduzem por critérios maus de que há uma justiça suprema perante a qual eles não ficarão impunes.

Como diz Jesus, «Vinde benditos de Meu Pai, recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo» (Mt 25, 34). À recompensa das acções boas, não pode deixar de se contrapor o castigo que será a morte física acompanhada da morte espiritual. O inferno para o homem, ensina Jesus, é precisamente não sobreviver à morte física decorrente das leis biológicas. Mas, Jesus não tem todo o saber, quem o tem é o Pai. Foi isso que Jesus não se cansou de dizer. A missão de Jesus é precisamente proclamar o saber que o Pai possui (Mt 20, 23); não é Jesus que perdoa, mas o Pai que perdoa (Mt 12, 30-32); Jesus diz que ninguém é bom a não ser Deus (Lc 18, 19).

Ser condenado por um Deus que expõe – através de Jesus – a conduta daquele que é bom, significa que seria absurdo Deus receber no seu “Reino”, perfeito na santidade, aqueles que são maus com os seus irmãos, aqueles que perseveram no mal, não se arrependendo da sua maldade. Como disse Jesus: «Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas quem perder a sua vida por Minha causa, salvá-la-á» (Lc 9, 24). Diz também que um bom (justo) pode estar entre aqueles que não cumprem os preceitos da Lei Mosaica («haverá mais tolerância para Tiro e Sidónia (…)» (Mt 11, 21,22). Ou sentencia: «Vós, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai, sem nada esperar em troca. A vossa recompensa será grande e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bom até para com os ingratos e os maus» (Lc 6, 35).

É um erro o autor de O Último Segredo estar a considerar Jesus como um ser mau porque ameaça com o “fogo” eterno, amaldiçoando os cruéis que sofrerão o “suplício”, sinónimo de morte eterna. A expressão “suplício”, por exemplo, contrapõe-se à recompensa dos justos que terão a “vida” eterna (Mt 25,46). Estas frases mostram que Jesus pretendeu dar aos seus ouvintes a dimensão do mal que praticam, em função do castigo que será atribuído. Se Jesus sofre e se condói ante o criminoso crucificado e arrependido que o lamenta – «Hoje mesmo estarás comigo no Reino de Meu Pai» (Lc 23, 42) –, quer-nos fazer avaliar o espírito misericordioso de Deus; se chama malditos, intemeratamente, aos fariseus, aos saduceus, aos escribas, às classes dirigentes da Palestina é porque serão benditos aqueles que se opõem à conduta desses grupos sociais (Mt 16, 6 e 11, 25, 41-46). Quando diz, «não penseis que vim trazer a paz» (Mt 10, 34), ou «não oponhais resistência ao mau» (Mt 5, 39), parece contradizer-se, mas o sentido da primeira frase é idêntico ao da segunda. Não veio trazer a paz porque a paz também pode ser podre, sem dentro, sem estar no coração. A paz que Jesus deseja não é a ausência de combate em prol da justiça e do bem; é a paz de um coração que, na paz, não aceita passivamente a injustiça, a calúnia e a crueldade. É a paz verdadeira que deve habitar o espírito e não a paz construída sobre alicerces de cobardia e submissão para não correr riscos.

E Jesus aceita o risco. Ele está no meio de inimigos e não deixa de dizer a verdade, mesmo que vá perder materialmente com isso. Lembremos a frase: «Por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro, estais cheios de hipocrisia e de iniquidade» (Mt 23, 28). Jesus toma o partido dos pobres, dos perseguidos, dos injustiçados, dos doentes, dos excluídos da sociedade, o que o expõe a ser denunciado (Judas vendeu-o por dinheiro), a ser trocado por Barrabás, um salteador, a ser motivo de prisão e condenação à morte com a pena máxima, a crucificação, pelo supremo tribunal de Jerusalém.


6. Outro ponto que O Último Segredo patenteia é a noção que JRS tem do que significa ser historiador e, portanto, do que é “fazer História”. Segundo um dos maiores historiadores contemporâneos, George Duby, o historiador «deve dar a maior atenção àquilo que não foi dito» porque «as omissões formam um elo fundamental do discurso ideológico». “Fazer História” implica, na verdade, confrontar os interesses das “classes dominantes” com “as ideologias dominantes”, mesmo com “as ideologias triunfantes” e as “elites”. Ensina Duby: «Difícil é, em primeiro lugar, a recolha de testemunhos (…) É o caso das ideologias ‘populares’ É igualmente o caso de todas as ideologias contestatárias que foram reprimidas» (Fazer História, p. 180). Ora, a de Jesus era-o. Por isso, Jesus, os seus apóstolos (e os seus continuadores), fazem parte da classe sem direitos, sem prestígio. Na verdade, Jesus contestava o poder.

Jesus sofreu a repressão brutal das autoridades políticas judaicas e do exército Romano dominador. É que Jesus pertencia ao grupo daqueles que combatiam o poder despótico de Roma («Já não há escravo nem homem livre»), e, em simultâneo, a hipocrisia e a avareza dos fariseus, entre outros pecados («Ai de vós escribas e fariseus hipócritas, porque pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do tomilho e desprezais o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade» (Mt 23, 23). Por outro lado, ao mesmo tempo que contestava o poder político do Estado Imperial Romano, atingia, sem subterfúgios, o poder político e religioso da região dominada, a Palestina. O tempo de pregação pública de Jesus foi sempre um tempo perigoso (sobretudo os grupos possidentes da hierarquia judaica queriam fazê-lo cair em ciladas, armadilhas linguísticas, contradições com a Lei Mosaica, uma Lei indiscutível para os quadros dirigentes de Jerusalém). O anúncio da Boa Nova não foi aceite pelos grandes, pelos poderosos, pela classe dirigente, nem dos judeus, nem do Império Romano, que os dominava desde a conquista romana.

Depois deste intróito, lembremos mais algumas das insuperáveis provas que JRS (o “historiador Noronha”) apresenta ficcionalmente à hipotética senhora católica, “a inspectora Valentina”, em O Último Segredo: «Não há um único texto romano do século I sobre Jesus. Nem manuscritos, nem documentos administrativos (…) nem alusões de passagem, nem referências crípticas» (p.60); «A primeira referência de um romano a Jesus foi feita no século II, por Plínio o Jovem, numa carta ao imperador Trajano» (p.60); «Quantos textos não cristãos do século I existem a relatar a vida de Jesus?» (p.60); «Vários episódios são completamente inventados» (p.147); «O Messias prometido (…) era aquele desgraçado que os Romanos haviam sacrificado» (p. 163); «Jesus», «um rabino pobre da Galileia cujo exército não passava de um punhado de pescadores e artesãos analfabetos» (p.165). Poderíamos prosseguir com a argumentação aparentemente arrasante usada pela “personagem Noronha” perante o mutismo da “inspectora” que, católica, notemo-lo de novo, se revela pouco convicta da sua fé (sempre muito complacente e desconcertada pelo espanto) perante os acometimentos eruditos de “Noronha”.


7. Ora, diz-nos George Duby em Fazer História I que é preciso «procurar nas refutações, nos argumentos da contra-propaganda» as pistas de aproximação dos factos estudados. O “historiador Noronha” não o faz ao longo das muitas páginas em que apresenta, quase incansavelmente, as suas provas. E, mais adiante, G. Duby insiste: «Os documentos nunca esclarecem directamente senão as ideologias que correspondem aos interesses e esperanças das classes dirigentes, porque apenas esses grupos detiveram os meios de construírem objectos culturais que não fossem efémeros e cujos vestígios se prestassem à análise histórica» (Ob. cit., pp.180 e 181).

Lembramos, ainda, ao autor de O Último Segredo que uma minoria anti-judaica e anti-romana propagava, clandestinamente, o Evangelho (=Boa Nova) transmitido por Jesus, um condenado à morte pela Lei judaica. Esta minoria adepta do Nazareno era ignorada e não constituía motivo de notícia para a maioria dos historiadores pagãos num mundo em que o Imperador se assumia como “Pontifex Maximus”, ou seja, chefe supremo da religião do Povo Romano. Só o historiador judeu Flávio Josefo se referiu vagamente a esse crucificado na região da Judeia.

Consultámos ainda o historiador Jean Moreau, autor de La Persecution du Chrystianisme dans l’ Empire Romain, pois nos pode ajudar a esclarecer este ponto acima levantado no livro de JRS com as provas (sempre as provas) que possui “a personagem Noronha”. Vejam-se as passagens de J. Moreau que, a seguir, transcrevemos: «Até às grandes revoltas de 66, os incidentes só tiveram uma importância local» (p.24); «A perseguição de Herodes em 44 data da missão cristã a Antioquia». E, mais à frente: «Não se pode pôr em dúvida que as perturbações que ensanguentaram Antioquia em 40 resultaram da missão cristã na cidade» (p.28). E, Jean Moreau ainda acentua: «É possível que a expulsão dos judeus de Roma decretada por Cláudio seja consequência da agitação provocada na comunidade da Urbe pela primeira missão anterior à chegada de Paulo» (p.28). «De facto, Suetónio menciona entre as medidas louváveis de Cláudio esta: com frequência explodem conflitos em Roma, desencadeados por judeus cristãos» (p.29). E sublinha a seguir: «Só o messianismo cristão, ultrapassado o quadro estreito do nacionalismo judaico, podia provocar perturbações até na colónia israelita da capital [Roma]» (p.29). Também outra importante passagem deste especialista de história do cristianismo primitivo: «A alusão de Suetónio visa realmente os primeiros ensaios da expansão da religião nova em Roma» (…); «a medida tomada por Cláudio visava os judeus de Roma no seu conjunto; o governo não tinha ainda aprendido a fazer a distinção entre os judeus e os cristãos» (p.30). Para mais informação, este historiador remete o leitor para a sua obra Les Plus Anciens Témoignages Profanes sur Jésus.

Para concluir, só mais uma achega de Léon E. Halkin em Initiation à la Critique Historique: «A história não pode pretender nem a verdade objectiva na evocação do passado, nem a codificação duma experiência directamente utilizável pelo homem» (Ob. cit., p. 104). Entre as fontes mais antigas sobre factos que hoje consideramos históricos, temos de considerar as alterações de sentido, as deformações de tradução, as imprecisões dos copistas como impossíveis de remover. Na obra L’Histoire et ses Méthodes, o historiador Samaran lembra a frequência das diferentes versões dos documentos históricos: «Há mais de 188 manuscritos medievais da Ilíada (…) 393 manuscritos das Enarrationes in Psalmos de S.to Agostinho (…) Ora cada manuscrito tem uma série de variantes; contam-se em 150.000 as do Novo Testamento» (Ob. cit., p. 1275).

Não há dúvida que as narrativas da pregação de Jesus foram escritas algumas décadas após a sua morte e ressurreição, pois a tradição cultural judaica era oral e não escrita. E JRS poderá ler, para mais informações elucidativas sobre o tema, o historiador Daniel Rops em A Vida Quotidiana na Palestina no Tempo de Jesus. Se os Apóstolos tinham ofícios mecânicos (e o próprio Jesus era carpinteiro) não era por esses ofícios serem, na época, de baixa condição social, como assegura JRS nas provas dadas pelo “historiador Noronha”, pois eram bem vistos pelas camadas mais cultas: «Todos os doutores da lei trabalhavam para ganhar a sua vida: R. Aquiba como lenhador, R. Joshua como carvoeiro, (…) e o grande R. Hillel era de tão modesta condição que, como servente de pedreiro, ganhava somente meio dinheiro por dia.» (D. Rops, Ob.cit., p.162).


8. Em O Último Segredo, JRS procura fazer crer que os apóstolos e seus discípulos esperavam Jesus após a morte para estabelecer, em breve, “o Reino” de seu Pai na terra. Como tal não acontecera, os discípulos dos apóstolos, pois estes já tinham morrido, começaram a escrever a sua doutrina para que não fosse esquecida. O ponto de partida de JRS são as próprias palavras de Jesus quando anunciava que os tempos do fim estavam próximos e viria, célere, estabelecer este “Reino” na terra. Ora este “Novo Reino” de que falava Jesus começava a construir-se a partir dele próprio, não materialmente. O “Novo Reino” partia dos corações das pessoas que seguissem a sua pedagogia de vida. Um mundo novo todo feito de amor, um mundo humano fraternal e puro seria erguido se os seus ensinamentos fossem seguidos. Os apóstolos deveriam ensinar ao mundo judeu e ao mundo pagão, e em particular ao vastíssimo Império Romano, a doutrina nova («até aos confins do mundo»). Como escreve J. Tolentino de Mendonça em Pai-Nosso que Estais na Terra, Deus torna-se presente através de Jesus: «Onde Jesus Cristo estava, o Reino de Deus mostrava-se (…) Jesus viveu a sua vida como manifestação extraordinária do Reino» (Ob. cit., p.89).

O Reino de Deus estaria inscrito nas potencialidades que as palavras de Jesus começavam a erguer num mundo escasso, pobre devido à ausência de uma Paternidade celestial toda feita de amor. Cada homem que seguisse a sábia Palavra de Jesus começaria a ser uma pedra do grande “Templo”, ou seja, do “Reino de Deus”. Este “Reino”, de que era arauto o Filho de Deus, começara a ser desenhado desde o chamamento dos primeiros apóstolos: «O Reino de Deus está dentro de vós» (Lc 17, 20). O Último Segredo de JRS, através da personagem “Noronha”, apresenta uma sucessão exorbitante de provas para refutar o carácter divino de Jesus Cristo, que citámos acima. Ora, contrariamente ao que aventa JRS, Cristo significando o Ungido, é uma expressão usada como atributo de Jesus e não como patronímico (com o qual JRS faz até uma paródia de claro mau gosto). Quando “a personagem Noronha” se refere, como a uma aberração, ao “Reino de Deus”, está a considerá-lo de natureza puramente material. Por isso, “o historiador Noronha” (JRS) diz que os ricos, os poderosos, os perseguidores, de acordo com as referidas palavras de Jesus (através da leitura dos Evangelistas), vão «inverter os seus papéis» e tornar-se pobres, sem poder, perseguidos (diz “Noronha”). Ora, esta inversão não pode ser material como JRS (ou “Noronha”) procura fazer crer. Lembremos apenas algumas palavras de Jesus: «Depois, direi á minha alma: Alma, tens muitos bens em depósito para muitos anos; descansa, bebe, come, regala-te. Deus, porém, disse-lhe: Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma; e o que acumulaste para quem será? Assim acontecerá ao que entesoura para si e não é rico em relação a Deus» (Lc 12, 19-21)


9. As provas a que recorre JRS (“a personagem Noronha”) são falaciosas porque num lugar ou “Reino” de santidade (ou virtude absoluta) não pode haver mal, pobreza, injustiça, vingança ou qualquer atitude persecutória. Este “Reino” de que fala Jesus só pode ser de natureza, espiritualmente, santa. Numa atitude, pelo menos aparentemente, perversa, escreve o “historiador Noronha”: «A humildade praticada hoje era uma forma de as pessoas se tornarem poderosas mais tarde e subjugarem as que agora eram poderosas e mais tarde iriam ficar fracas» (p.321). Porque o “Reino de Deus” é de natureza espiritual e não físico-material (ou de acordo com as leis da física deste universo), a interpretação da frase «o Reino de Deus está perto: Arrependei-vos e acreditai na boa nova» foi deformada no seu sentido pelo “historiador Noronha”. Lembramos a JRS apenas algumas frases que atestam a espiritualidade do “Reino de Deus” e não a sua materialidade (segundo JRS) e que Jesus claramente revela: «Onde estiver o vosso tesouro, aí estará, também, o vosso coração» (Lc 12, 34), a «porta é estreita» (Lc 13, 24);. Estas frases são frases de natureza espiritual e não de cariz material ou concreta.

O “Reino” que Jesus anuncia é espiritual: «Na ressurreição nem os homens terão mulheres nem as mulheres maridos, mas serão como anjos de Deus no céu» (Mt 22, 30); «Não vos preocupeis quanto à vossa vida (…), pois a vida é mais que o alimento e o corpo mais que o vestuário» (Lc 12, 22-23). O próprio Filho de Deus divulgou e mandou divulgar («Ide e ensinai o que eu vos ensinei») ao mundo o que dissera aos apóstolos, pela exclusiva vontade desse mesmo Deus que queria, no seu “Reino”, todos os homens que fossem capazes de viver vencendo a tentação do mal, ou, arrependendo-se daquilo que tinha feito. Lembremos as palavras de Jesus: «Acumular tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem os corroem, nem os ladrões arrombam os muros a fim de os roubar» (Mt 6, 19). Ou ainda: «Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se arrependa do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento» (Lc 15, 7).


10. Quando o “historiador Noronha” apresenta um número de provas que passam sempre pelas longuíssimas citações evangélicas (ou bíblicas em geral) há a acusação de que os cristãos escreveram aquelas coisas nos evangelhos ou nas epístolas (por exemplo, Paulo de Tarso) sem escrúpulos, sem se preocuparem com a verdade dos acontecimentos, mas só porque queriam enganar. A trave mestra do romance O Último Segredo de JRS é a acusação (sem defesa consistente) de que os primeiros cristãos, os apóstolos, os discípulos destes, os padres da Igreja, os copistas, etc., forjavam frases cheias de ambiguidade, de explicações fraudulentas, de invenções, palavras de sentidos duplos, contradições em cima de contradições, tudo ao serviço de alcançarem mais adeptos, continuadores daquelas crendices por onde não passava uma réstia de honestidade.

Mas perguntamos a JRS: Que interesse teria S. Paulo em, como ele deixou escrito, «suportar trabalhos, prisões, açoites, frequentes perigos de morte»? E também de por «três vezes ter sido açoitado com varas, uma vez apedrejado, viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte dos meus concidadãos, perigos dos pagãos, perigos na cidade, perigos no mar, perigos entre os falsos irmãos» (2 Cor 11, 23-26)? Os mártires, como o foram S. Paulo e S. Pedro (morte por crucificação, como Jesus), Santo Estêvão (lapidado até à morte), Santa Cecília (decapitada), S. João de Brito (decapitado) e tantos outros ao longo de dois mil anos, mostram claramente como a fé cristã está muito acima de interesses egoístas, do alcance de bens, ou de honrarias materiais. A fé revelada, até serem capazes de se deixar torturar e morrer por ela, tinha uma única finalidade: dar testemunho da Verdade, essa Verdade desocultada pela Palavra de Jesus, Ele a confundir-se com o próprio “Reino” que proclamava. O “Reino estava próximo”, mas, como ensina Jesus: «Ninguém pode afirmar: Ei-lo aqui ou ali, pois o reino de Deus está dentro de vós» (Lc 17, 21). É claro que Jesus queria dizer que “o Reino de Deus” não ocupava lugar de ordem físico-material. E esse Deus do “Reino” que anuncia era, na verdade, um Pai, um Pai com um “Reino” de Amor, já e agora, sem ontem nem amanhã. Esse Amor que está presente, por exemplo, nestas palavras de Jesus: «Orai pelos que vos perseguem» (Mt 5, 44).


11. O Último Segredo de JRS é um romance que procura ser de tese. Mas, falta-lhe o domínio da arte ficcional para conseguir a osmose entre a sua tese anti-cristã e o romanesco. A sua arremetida contra o cristianismo é de uma violência insuspeitada, em JRS. Todos os meios foram, lamentavelmente, válidos, para atingir o objectivo maior: cravejar uma espada de morte no peito ensanguentado de Jesus, mesmo pregado na cruz, e naqueles que acreditam na sua Palavra. Não sei se, apesar da catadupa de provas dadas ao longo das 563 páginas deste livro, JRS terá conseguido que os leitores acreditem na sua aventura de pôr em questão o cristianismo através do descrédito (do rebaixamento), lançado sobre os documentos da linha herdada dos apóstolos de Jesus, que chegaram até aos nossos dias.


12. A fé nas palavras de Jesus não precisaria sequer de todas as Palavras que os testemunhos evangélicos puseram ao nosso dispor. E isto apesar de nenhuma das suas palavras apresentar as tão veneradas provas de JRS. Os verdadeiros cristãos sempre firmaram a sua fé na simplicidade, na transparência, na pureza daquele que revolucionou o sentido da condição humana. Lembrem-se as palavras de Jesus: «O espírito é que dá a vida, a carne não serve para nada. As palavras que Eu vos disse são espírito e vida» (Jo 6, 63). As Suas palavras eram ditas sem subterfúgios, sem escondidas intenções. As suas palavras só carregavam o peso da verdade que o Pai o incumbira de transmitir. Eram palavras ditas com a pureza de um coração que ama o Seu Pai celestial e que tem a missão de redimir os irmãos mais vulneráveis, mais fracos perante a tentação de praticar o mal. A missão de Jesus é uma epifania: as Suas palavras transmitiam a Verdade que Deus queria transmitir aos homens para que o seu “Reino estivesse próximo” de cada um deles, na hora do fim. Sobretudo, para que a sua vida não tivesse fim, para que tivessem a vida, e a vida em abundância.


28 de Fevereiro de 2012

Teresa Ferrer Passos

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