Cora Coralina (1889-1985) - escritora e poeta brasileira |
Minha infância*
(Freudiana)
Éramos quatro as filhas de minha mãe.
Entre elas ocupei sempre o pior lugar.
Duas me precederam, eram lindas, mimadas.
Devia ser a última, no entanto
veio outra que ficou sendo a caçula.
Quando nasci, meu velho Pai agonizava,
logo após morria.
Cresci filha sem pai,
secundária na turma das irmãs.
Eu era triste, nervosa e feia.
Amarela, de rosto empalamado.
De pernas moles, caindo à toa.
Os que assim me viam, diziam:
" Essa menina é o retrato vivo
do velho pai doente".
Tinha medo das estórias
que ouvia, então, contar:
assombração, lobisomem, mula sem cabeça.
Almas penadas do outro mundo e do capeta.
Tinha as pernas moles
e os joelhos sempre machucados,
feridos, esfolados.
De tanto que caía.
Caía à toa
Caía nos degraus.
Caía no lajedo do terreiro.
Chorava, importunava.
De dentro a casa comandava:
"-- Levanta, moleirona."
Minhas pernas moles desajudavam.
Gritava, gemia.
De dentro a casa respondia:
-- Levanta, pandorga.
Caía à toa
nos degraus da escada,
no lajeado do terreiro.
Chorava. Chamava. Reclamava.
De dentro a casa se impacientava:
"-- Levanta, perna-mole"
E a moleirona, pandorga, perna-mole
se levantava com seu próprio esforço.
Meus brinquedos
Coquilhos de palmeira.
Bonecas de pano.
Caquinhos de louça.
Cavalinhos de forquilha.
Viagens infindáveis
Meu mundo imaginário
mesclado à realidade.
E a casa me cortava: "menina inzoneira!"
Companhia indesejável, sempre pronta
a sair com minhas irmãs,
era de ver as arrelias
e as tramas que faziam
para saírem juntas
e me deixarem sozinha,
sempre em casa.
A rua, a rua!
(Atracção lúdica, anseio vivo da criança,
mundo sugestivo de maravilhosas descobertas)
-- proibida às meninas do meu tempo.
Rígidos preconceitos familiares,
normas abusivas de educação
-- emparedavam.
A rua. A ponte. Gente que passava,
o rio mesmo, correndo debaixo da janela,
eu via por um vidro quebrado, da vidraça
empanada.
Na quietude sepulcral da casa,
era proibida, incomodava, a fala alta,
a risada franca, o grito espontâneo,
a turbulência ativa das crianças.
Contenção, motivação. Comportamento estreito,
limitando, estreitando exuberâncias,
pisando sensibilidades.
A gesta dentro de mim,
Um mundo heróico, sublimado,
superposto, insuspeitado,
misturado à realidade.
E a casa alheada, sem pressentir a gestação,
acrimoniosa repisava:
" Menina inzoneira!"
O sinapismo do ablativo
queimava.
Intimidada, diminuída. Incompreendida.
Atitudes impostas, falsas, contrafeitas.
Repreensões ferinas, humilhantes.
E o medo de falar.
E a certeza de estar sempre errando.
Aprender a ficar calada.
Menina abobada, ouvindo sem responder.
Daí, no fim da minha vida,
esta cinza que me cobre,
Este desejo obscuro, amargo, anárquico
de me esconder,
mudar o ser, não ser,
sumir, desaparecer,
e reaparecer
numa anônima criatura
sem compromisso de classe, de família.
Eu era triste, nervosa e feia.
Chorona.
Amarela de rosto empalamado,
de pernas moles, caindo à toa.
Um velho tio que assim me via
dizia:
"-- Esta filha de minha sobrinha é idiota.
Melhor fora não ter nascido.
Melhor fora não ter nascido.
Feia, medrosa e triste.
Criada à moda antiga,
-- ralhos e castigos.
Espezinhada, domada.
Que trabalho imenso dei à casa
para me torcer, retorcer,
medir e desmedir.
E me fazer tão outra,
diferente,
do que eu deveria ser.
Triste, nervosa e feia.
Amarela de rosto empapuçado.
De pernas moles, caindo à toa.
Retrato vivo de um velho doente.
Indesejável entre as irmãs.
Sem carinho de Mãe.
Sem protecção de Pai,
-- melhor fora não ter nascido.
E nunca realizei nada na vida.
Sempre a inferioridade me tolheu.
E foi assim, sem luta, que me acomodei
na mediocridade de meu destino.
ACERCA DO POEMA "MINHA INFÂNCIA"
De uma infância torta entre as horas da humilhação e da desdita; a procurar-se sempre e tanto tempo e tanta mágoa e tanta ausência de amor e era apenas e só uma criança.
Aqui assume-se. Numa idade avançada como Cora Coralina. Quantas, quantas crianças hoje semelhantes, espancadas, espezinhadas, não escutadas, só por serem criança!
Este poema de Cora Coralina foi, hoje, publicado no Facebook, por Cecy Carvalho. Trata-se de um poema incluído no livro Poemas dos Becos de Goiás e Histórias Mais. Só em 1965, aos 75 anos, ela conseguiu realizar o sonho de publicar este livro.
Cora Coralina é o pseudónimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas que sobreviveu muito tempo como doceira para sustentar os quatro filhos, depois de o marido, o advogado Cantídio Bretas, morrer em 1934. Tornou-se conhecida como Cora Coralina, a primeira mulher a ganhar o Prémio Juca Pato, em 1983, com o livro Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha.
25 de Abril de 2017
Teresa Ferrer Passos
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