UMA MEDITAÇÃO POSSÍVEL
«(…) Ele foi o Papa que o mundo pôde ver ensanguentado por
amor do mundo, num momento crucial, quase no início do seu longuíssimo
pontificado, a 13 de Maio de 1981, quando, em plena Praça de São Pedro, sofreu
o atentado que veio a definir o sentido do seu percurso, vinculando-o a Fátima
e à sua Mensagem, nomeadamente à terceira parte do Segredo que, por sua
iniciativa, foi divulgado no ano 2000, oferecendo a imagem de um bispo de
branco, caindo sob o fogo de armas.
Um Papa em sangue. João Paulo II ofereceu, aos olhos dos
homens deste tempo, algo já esquecido nas lonjuras da Igreja nascente: o sangue
de um sucessor de Pedro. Escolher o seu sangue como relíquia é trazer para o
século XXI a lembrança do sinal de contradição que o acontecimento do atentado
constituiu nos fins do século XX. A sua vida como Papa, sabemo-lo, obedeceu a
esse desígnio: introduzir a Igreja no terceiro milénio.
O seu sangue, de ora em diante exposto à compreensão ou à
incompreensão dos homens, crentes ou não, reveste-se de grande significado,
convoca, para o milénio que começa, a trama global em que viveu o seu múnus
pontifício. Discípulo de Cristo e seu Vigário, da chamada a concretizar nestes
tempos a missão do primeiro dos apóstolos, nada de mais significativo poderia
ser oferecido aos tempos, como sinal e interpelação, que o seu próprio sangue.
Este permanecerá perenemente como lugar de enraizamento de um milénio que se
escreve diferente desde o princípio, porque João Paulo II, Papa entre dois
tempos, não temeu derramá-lo. (…)
A sua santidade é próxima, real, nada tem de etéreo ou
angelismo. É de carne e de osso, de olhares e sorrisos, palavras serenas e
palavras duras, palavras de compreensão e palavras de censura, palavras de
compaixão e palavras de beleza... e gestos, muito gestos, muitos gestos e actos
de sentido profético inesgotável. Místico, não fugiu ao mundo nem se voltou
sobre si em misticismo desencarnado. Actuante, não caiu em activismo. Viajante,
imobilizava-se em longos silêncios orantes.
Atlético e saudável, soube envelhecer sem se esconder nem
permitir que o escondessem, como hoje tanto acontece. Confiado aos cuidados
médicos e neles confiante, recusou o encarniçamento terapêutico e acolheu a
morte na sua hora. A sua santidade foi uma santidade corpórea, tangível,
situada no tempo e no espaço, tecida das múltiplas relações que estabeleceu,
mas profundamente enraizada na experiência quotidiana da Páscoa de Cristo, acontecimento
culminante da divina Misericórdia. O sangue diz a santidade totalmente humana
que corria nas artérias e veias do corpo que foi e que nós vimos e ouvimos,
tocámos e sentimos.
Só o sangue poderia expressar esta totalidade, porque só o
sangue não é dizível como uma parte do corpo que a pessoa é. O sangue chega a
todo o corpo. Chegou a todo o corpo que João Paulo II foi, naturalmente
bombeado por um coração incansável, levando e trazendo, cumprindo a troca que
possibilita a vida; só o sangue, elemento corpóreo culturalmente símbolo de
martírio e doação, poderia expressar a radicalidade que em cada um dos seus
compromissos foi visível. Nada como o sangue seria relíquia adequada do Beato
João Paulo II. Sangue-relíquia.
É belo, também, lembrar que o sangue deste Papa, sendo
sangue derramado, é sangue recebido. Sangue recebido de anónimos homens e
mulheres que, na dádiva do seu próprio sangue, dão vida, como deram vida a João
Paulo II, nas muitas circunstâncias da sua existência em que precisou do sangue
de outros para continuar vivo, nomeadamente na sequência do atentado. Quem
seriam? Quem terá, sem o saber, dado do seu sangue ao Papa?
Toda a tradição bíblica do sangue como princípio de vida e,
em Jesus, princípio de vida nova, oferece um horizonte de compreensão para
visitarmos a relíquia do sangue do Papa de todas as gentes, que todo o mundo
visitou. O sangue do Papa das gentes resulta da mistura dos sangues de pessoas
várias, em momentos críticos vários da sua existência. Sangue derramado que é sangue
recebido, que é sangue dado.
A relíquia surge, assim, liberta de toda e qualquer
enviesamento de interpretação pietista ou marcada pela superstição, como uma
narrativa de amor, expressão do elevado patamar de comunhão, tão global quanto
interpessoal, que este Pastor universal atingiu. (…)»
José Nuno Ferreira da Silva**
* Internet, Paróquia de
S. Cosme, Gondomar (excertos).
** O Pe. José Nuno nasceu em 1964 em Gondomar, é Licenciado
em Teologia e Doutorado em Bioética pela Universidade Católica. Actualmente, é
Capelão do Hospital de São João no Porto e Coordenador das capelanias
hospitalares.
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