domingo, 28 de julho de 2024

PÁGINAS SOLTAS


   «Última Ceia», pintura do holandês Jan Erasmus Quellinus
(1634-1715)


«Num tempo de crenças cegas e de obediência estrita à letra da Lei, num tempo esquecido da magnificência de reis como Salomão, num tempo de belos cânticos sobre as Lamentações de Jeremias ou os Salmos de David, tudo o resto parecia inútil, desnecessário.

Em terras de Canaã, cada novo pensamento que eu transmitia nas sinagogas ou nas colinas eivadas de tamareiras ou de ralas pastagens, os desorientava logo que o comparavam com os rolos da Lei lida e interpretada nos lugares de oração pelos doutores do Templo.
(...)
As raras oportunidades de os doentes e os pobres se encontrarem comigo acabavam muitas vezes frustradas. Se me acabavam por ver e mesmo escutar, como era difícil descobrirem os mil e um sentidos das minhas parábolas, a procurarem chegar à sua linguagem de camponeses e de pescadores? Cheias de pequenos episódios, a serem ouvidas com o bulício das gentes que se amontoavam nas ruas, quem estava em condições para as manter na memória por muito tempo, tal como eu as tinha dito?

Se eu sabia que ao longo dos tempos, no estudo e na reflexão silenciosa, seriam decifradas essas pequenas histórias (acrescentadas, rasuradas e omitidas muitas das minhas palavras e até numerosos pensamentos revelados), como me custava ver aquelas simples almas, sem conseguirem compreender o essencial daquilo que procurava que chegasse mesmo ao fundo dos seus corações. Nada se podia alterar. Os homens e os tempos não podiam ser outros. Não podiam ser melhores do que os escolhidos por meu Pai. Se os escritos dos profetas tinham lapsos, deformações, erros, exageros e omissões que enganavam muitos tratados de sabedoria, era preciso elucidar o pouco que ficara de proveitoso das suas narrativas.

Na verdade, eu passava entre aquelas gentes para lhes transmitir a verdade. Sem pompa nem circunstância. Eu viera para esclarecer, para indicar os caminhos da verdade única.»
                                                                                  
     Teresa Ferrer Passos, «Jesus até ao Fundo do Coração», Hora de Ler, Leiria, 2021, pág.s 178-179.


sábado, 20 de julho de 2024

UM POEMA



O CAIS


                         Ao dia 2o de Julho de 1993


A aventura começa num nevoeiro espesso.
O cais de embarque tem tons de arrepio.
Ninguém prevê que com um tal começo
Possamos ir além das sombras e do frio.

Eu tenho razões para acreditar no dia
Pois tudo em ti é luz e é calor.
Mas trago em mim a noite doentia
Onde ameaça naufragar o nosso amor.

Felizmente, o cais de onde partimos,
Foi Deus quem o fez para nós dois.
É por isso que ambos já sorrimos
Às bênçãos que nos sorrirão depois.

O Mundo Novo que vamos alcançar
Chama-se Cura, Paz e Conversão.
Estar neste cais é já como chegar:
Tu estás com Deus, eu vou por tua mão…


20/7/2024

                              Fernando Henrique de Passos

UM POEMA


Ribeira de Alcantarilha em tempos idos


NUM DIA DE SOL


                           Lembrando o dia em que nos conhecemos, há 31 anos 


as sombras uivavam nas vitrines.
as porcelanas pareciam pintadas sobre vidas
em que a luz não vibrava mais que uma ondulação.

sentia-me arrastada por uma tarde desenhada pelo sol,
inclemente. a sede escorria dos meus lábios
ressequidos. uma insustentável fragilidade corrompia
os meus pensamentos a esvaziarem-se de sentido.

e eu silenciava uma grande incerteza que pesava
nos meus ombros habituados demais ao desânimo.
 
inesperado um relâmpago acendeu no ar pesado
uma luz estranha, uma luz quase apagada plantava
flores nos meus cabelos feitos terra e mar e vento.

um mundo renascia como se tivesse existido sempre.

afinal era um mundo que eu nunca vira antes
era um mundo com a novidade imensa
daquilo que nunca existiu, nunca foi alguma coisa,
nunca eu conhecera em tempo algum.
 
e eras tu, com a tua claridade branda e luminosa.
eras tu esse relâmpago e eu ainda não sabia ver-te.

20 de Julho de 2024

                                                    Teresa Ferrer Passos

sexta-feira, 12 de julho de 2024

MEMÓRIA

                              


                          


                                   

AS MINHAS CARTAS


                                      Com a saudade de minha mãe,
                                      desde o dia 11 de Julho de 1990


as minhas cartas escrevem a tua ausência que escorre
nas paredes da casa. Escrevem o teu olhar inscrito
em cada folha verde-musgo dos plátanos da nossa rua
e os dias caiados por asas rompem o ar que respirámos.

as minhas cartas tangem como sinos invisíveis para ti
nestas horas que me dizem que estás a ler-me
e a sorver-me, no teu além vivo como a vida
que te escapou apesar da tua incredulidade em perdê-la.

as minhas cartas longas perdem-se 
ainda embebidas na alegria das tuas horas cor de rosa
e extasiadas no perfume dos goivos e dos gladíolos vermelhos
que acariciavas com os dedos entorpecidos de dor.

as minhas cartas deslizam sem saber nas águas do rio
onde moras e onde passas com uma ondulação mansa
à procura da minha presença eclipsada 
porque as tuas palavras já não escuto.
 
11 de Julho de 2024

                                            Teresa Ferrer Passos