Uma “fantástica viagem
pelo mundo do irreal” é a viagem do cientista Taoj no romance que intitulei Um Cientista e uma Folha de Papel em Branco”
(Chiado Editora, 2015). A personagem Taoj é, nesta narrativa, o protótipo do
homem contemporâneo, enlaçado nos liames das ideologias materialistas
propagadas por uma plêiade de intelectuais. Desde o século XVIII, o
racionalismo impõe-se e avança cada vez com mais poder de infiltração nas
camadas populares.
Os caminhos da ciência
prolongam-se pelos caminhos do romancista como pelos dos homens de ciência e da
política. O descrédito da Igreja Católica torna a religião como um feudo de
crendices e superstições. O marxismo infiltra-se assim com mais facilidade e
derruba os seus bastiões populares. No século XIX as ideologias materialistas
conquistam terreno a olhos vistos. O cristianismo soçobra ao perder o seu
verdadeiro sentido, ofuscado por alguns dogmas da Igreja Católica.
Quer o socialismo ateu,
quer o liberalismo são materialistas. Neste ponto, recusam a dimensão espiritual
do Homem que tem a ver com sofrimento, com o mistério de Deus, com a felicidade
eterna e não efémera, com o amor no coração de cada homem e não com o amor
defendido pelo socialismo, o amor em abstrato e global. A passos largos, acabam
ambos por caminhar no mesmo sentido. A prova está na sociedade contemporânea dos nossos dias.
Nesta mundialização, que se vem alargando a grande parte do mundo,
o dinheiro é a solução. O dinheiro é o fulcro de todos os sentidos das
revoluções, as proletárias e as das elites das classes média e alta. O dinheiro
é o cerne da luta dos materialistas ateus e defensores do estado socialista e é, igualmente, o cerne da luta da ideologia do liberalismo económico, na feição dos liberais e ultra-liberais.
Entre a 2ª metade do
século XX e este princípio do século XXI estão erguidos os alicerces da
felicidade terrena levantada pelo socialismo proletário. Os mesmos suportes erguem-se com
o liberalismo político e económico. Da Europa Ocidental à Europa de Leste, da
América à China, em parte a África, estas duas fações, na aparência contrárias,
avançam no mesmo sentido: o materialismo ateu da vida contemporânea.
Formou-se uma mentalidade
materialista que hoje prospera com a força da imagem ao serviço do consumismo desenfreado da
maioria. A fé no cristianismo esconde-se em minorias cheias de medo. A
periferia dos excluídos pelo espírito, silencia-se, esconde-se. Os intelectuais
vitoriosos exultam na venda dos seus produtos literários, científicos e
artísticos sem se distinguirem dos objetivos do materialismo ateu. Têm ao seu
serviço os meios de comunicação social e as redes internéticas. A internet
contém a pedagogia do materialismo e do ateísmo que o secunda. Tudo gira à sua
volta.
Neste romance, procurei
espelhar o peso, na sociedade, do racionalismo materialista vitorioso. Simboliza-a um ecrã
de computador que dá todas as pistas ao cientista Taoj. A folha de papel em
branco significa o vazio do tudo é permitido, mas não vislumbra a felicidade
prometida. Na vigília, no sono ou no sonho, Taoj não sai do mundo fictício onde
a sociedade materialista contemporânea o lançou.
Tudo o resto, o amor à
família não passa pelo seu coração, o amor aos outros é-lhe estranho, porque, para ele, os outros são sempre os outros. Como pode amá-los de verdade, se estão
separados pelo muro do egocentrismo? Poderia perguntar Dostoievski, o autor de Os Irmãos Karamazov. Para Taoj, o mundo da
matéria reduz-se ao mundo do corpo a que falta a sua cabeça. Procura-a sem
cansaço, porque só o seu corpo tem sentido e se lhe falta uma parte é o
desespero. A personagem Taoj sente-se, como o homem contemporâneo, esmagado
pelo fracasso do presente, quando lhe prometem a felicidade, uma felicidade ao
seu alcance e a frustração desespera-o como se fosse igual à morte.
Perdido em códigos, endereços, programas, estradas, recursos do ecrã, só descobre becos
sem saída ou muros alheios à felicidade. A solução parece estar sempre à vista,
sempre à mão de semear, mas a solução é falsa porque a carne está transformada
em ídolo e recusa sequer uma espreitadela para o espiritual. Os
paradoxos da vida humana tornam-se comuns a todos porque todos esqueceram que
tinham alma e assim aceitam costumes por onde passa o sórdido ou o abjecto.
A cabeça perdida
representa a razão, única realidade em que Taoj acredita: «Cheio de horror de
si e do seu mal-estar-no-mundo» (p.42). Mesmo quando encontra a razão, depois
de várias aventuras, afinal, numa terrível imobilidade, não encontra a
felicidade. As mil e uma imagens oferecidas pelo ecrã, o diálogo nas redes
internéticas acaba por se revelar fictício ou falso. E grita: «o inferno está
aqui, aqui dentro de mim (p.103)». Numa procura infindável, cai na procura
impossível: os mistérios maiores de um Criador que não sabe nada sobre a sua
própria Origem.
Na 2ª parte como que se inicia um outro romance: a
procura de Taoj vai transformar-se na procura de um Deus que, como ele e à sua
imagem, procura a sua felicidade. Uma ambição mais forte ainda. O ecrã das
imagens dos códigos, das autoestradas internéticas continua a guiar Taoj,
indiferente aos absurdos em que se encaixa a sua sede impossível de suster o
desejo de desvendar todos os mistérios, mistérios que vê como ilusórios porque
só são mistérios enquanto não se descobrem.
Indiferente aos valores do
espírito que eleva a matéria e a sustenta até à eternidade, mesmo a carregar o
peso das imagens dos «corpos amolgados pelos bairros da lata e os uivos das
mulheres agredidas e a criança violentada como se fosse o lôdo dos pântanos»
(p.270), inicia a nova caminhada centrada em Alfa, o Princípio Originário. Alfa representa o Deus Criador num mundo de nada, em
que não vive, e em que a mudança é um atentado.
É ainda «na matéria em
ascensão que Alfa descobre asas abertas para as distâncias do impossível»
(p.294). O emergir da matéria com todos os seus absurdos (o big bang) é a saída para mais
uma vez se enaltecer o mundo nascente da matéria. Na idolatria da matéria, todo
o edifício do mundo do pensamento materialista ateu se ergue como se não
tivesse limites, como se fosse o único possível e o único a que se deve
ascender até uma vida só assente na felicidade terrena, assente no material.
As teorias revolucionárias, sem a dimensão metafísica do Homem, como pensava Dostoievski, não oferecem,
acreditamos nós também, uma felicidade como o epílogo de todos os prazeres, prazeres a
multiplicarem-se sem contenção e na ausência de uma porta do espírito para
ultrapassar os limites da matéria.
Teresa Ferrer Passos
Texto escrito pela autora de Um Cientista e uma Folha de Papel em Branco, pouco antes da sua apresentação na Fnac do C. C. Colombo, em Lisboa, a 10 de Outubro de 2015. A apresentação esteve a cargo do Professor Doutor António Cândido Franco da
Universidade de Évora.