quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Caminhos: Dos enigmas e da verdade (4)


«Alienado da vida monótona da casa de seus pais, demasiado frugais para com ele próprio e demasiado pródigos para com os familiares e os amigos, Taoj sonhava todos os dias com a busca da verdade, essa verdade obscura que poderia desvendar o sentido do pensamento humano, cuja «casa» talvez só fosse erguida em complexidades algorítmicas de memória. 

Essa verdade recôndita absorvia o seu olhar, a fazer transparecer uma inteligência funda e perspicaz, a penetrar até as paredes espessas daquela casa de sombras e de amor amortecido pela mudez, pela indiferença ou só pelo árido ritual de uma religião feita de coisas materiais.»

Teresa Ferrer Passos, Um Cientista e uma Folha de Papel em Branco (romance), Chiado, 2015, p.16.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Um poema do livro «Ecos Abaixo do Audível»



 ABAIXO DOS 20 Hz


A sul do sol, a norte da largada,
O bando migratório rompeu em mil grasnidos
E o eco sideral da paz dilacerada
Chegou aos meus ouvidos.
Respondi por meio do meu pardal-correio
Mas o pardal não alcançava o bando:
Por mais que andasse ficava sempre a meio
E foi desanimando.
O bando agora já deve estar bem perto
Do oceano da luz imperecível.
Eu fico longe, mas fico mais desperto
Para os sinais abaixo do audível.
Fernando Henrique de Passos, "Ecos Abaixo do Audível", Hora de Ler, 2020, p.28


Comentário de Teresa Ferrer Passos no Facebook:

De novo a Física na arte poética. Este poema inclui-se na 1ª parte do livro ("Cortando um por um todos os nós") em que Fernando Henrique de Passos reune os seus poemas de temática científica escritos nos últimos sete anos. A sua poesia de inspiração científica lembra-me Vitorino Nemésio e o seu livro de poemas «Limite de Idade» publicado em 1972 ou António Gedeão e o seu livro «Máquina de Fogo» de 2006, onde incluiu o poema "Máquina do mundo" de que cito estes versos:
"O universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria."

O esplendor da maravilhosa natureza e dos seus fenómenos, a que os gregos chamavam "Physis" (Fisica), uma fonte riquíssima de "poiesis", ou seja, de criação...

domingo, 27 de setembro de 2020

Caminhos: Dos enigmas e da verdade (3)

O COLOSSO de RODES, uma das maravilhas do mundo antigo (construído
em 305 a.C.) para celebrara vitória da ilha Rodes sobre a Macedónia
(destruído em 226 a.C. por um terramoto)


«Em contínuas interrogações, com o seu corpo todo a funcionar pela sua cabeça (numa solidariedade de corpo, tenta, a todo o custo, substitui-la na sua flagelante ausência) parece ainda, por momentos, persistir na ideia de que se fizer alguma escolha, será sempre uma escolha errada, levando-o para falsas teorias desse «colosso de Rodes» chamado memória do ser (ou do universo).

Numa ousadia que, ao longo de anos de desespero desconhece, Taoj, quase cego pela perturbante luz solar, plena de probabilidade e de delírio, decide-se carregar na tecla azul e no símbolo 7. Espera.

Quer uma resposta, ainda que breve, mesmo tão breve como uma sílaba ou uma vogal. A resposta tarda. Num décimo de segundo, Taoj julga que se está a enganar. Só pode ser algum engano.»

 Vê uma tecla amarela com a letra N; com a cor azul, surge o desenho do símbolo 9./6B. Não será uma escolha melhor? Carrega nela e depois no símbolo.

Folhas de cerejeira (parecem-lhe de cerejeira) esvoaçam, oferecendo ao ecrã uma tonalidade acentuadamente verde. Depois, numa das mais verdejantes, vê inscrito a vermelho o endereço w/L./w./finito.»

Teresa Ferrer Passos, Um Cientista e uma Folha de Papel em Branco (romance), Chiado, 2015, pp.52-53.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Caminhos: Dos enigmas e da verdade (2)


«Esta aventura parece a Taoj infindável, porque mesmo na ausência da sua cabeça, descobre que ela é ainda o guia, a consciência lúcida, a porta a abrir-se, o remo a resistir ou a alavanca a pulsar no seu corpo lívido, exausto, todo desconfiança de si, mas ainda sem determinar o mais insignificante sentido de fim. Uma nova dinâmica começa a crescer entre rios de imobilidade; a ideia de encontrar, sacode-o como uma censura e a vontade do grande projecto edifica-se em movimentos vertiginosos entre as suas células enervadas num fundo caótico, como se tudo aquilo fosse um rumo para o encontro.»

Teresa Ferrer Passos «Um Cientista e uma Folha de Papel em Branco» (romance), Chiado, 2015, p.105.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Uma breve passagem de «Anunciação»

«Assunção da Virgem»
do pintor italiano Federico Zuccari (1539-1609)

«Os instantes passavam entre as sonoridades das pequenas ondas sem que Maria os descortinasse. E ela queria pegar-lhes, apalpá-los como se fossem uma coisa viva. Mesmo que só ao de leve.
Como pode o tempo ocupar esses espaços tão curtos, que separam as incessantes ondulações, interrogava-se fascinada pelos seus artifícios, os seus ardis. Se não fosse só aparência, o tempo não seria estranho à plena sabedoria das oníricas águas. Como elas são calmas por não pensarem no antes nem no depois! E interiorizava tudo isto num silêncio de si, sem tempo.»
      Teresa Ferrer Passos, Anunciação (romance), Universitária Editora, Lisboa, 2003, pág.14.

domingo, 13 de setembro de 2020

De novo, pensar disperso


Quando nos parece que não vivemos, é que vivemos e até ao limite.

*

O fruto da amendoeira é cheia de encobrimentos, como certas pessoas...
  
*

Uma simples sombra revela que somos algo de diferente, algo cheio de mistério, e esse mistério é uma grande construção.

13/9/2020

Teresa Ferrer Passos

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Pensar disperso


A vida está sujeita a leis naturais, tanto benéficas como maléficas, a que ninguém pode escapar. Quando surge uma vida, nada sabemos sobre o que lhe pode vir a acontecer, mas sabemos que, ao viver, tem de defrontar o "bom" e o "mau", o "justo" e o "injusto". E talvez seja esse o grande mérito da humanidade: mesmo assim quer viver, não desiste da vida! E Deus está muito acima de tudo isto. Paira no Seu "reino". Este "reino" tem outros senhores - "o meu reino não é aqui, não sou deste mundo" (Jesus o disse).     
11/9/2020
Teresa Ferrer Passos

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

O «Proto-Evangelho de Tiago»: Breve memória do nascimento de Maria


Um casal, Ana e Joaquim, já de idade avançada, foram considerados indignos para o Sumo-Sacerdote do Templo de Jerusalém por "crime" de esterilidade. 

Santa Ana, S. Joaquim,
Maria,
Jesus e João o Baptista 

Excerto da oração de Ana: «(...) Ai de mim! A quem me posso comparar? Nem sequer a estas águas, porque até elas são férteis diante de ti, Senhor. Ai de mim! A quem me igualo eu? Nem sequer a esta terra, porque ela também é fecunda, dando seus frutos na ocasião própria, e te bendiz a ti, Senhor.(...) [capít. 3.3]»

Mais tarde: «(...) E eis que se lhe apresentou um anjo de Deus, dizendo-lhe: "Ana, Ana, o Senhor escutou teus rogos: conceberás e darás á luz e de tua prole se falará em todo o mundo". Ana respondeu: Viva o Senhor meu Deus, que, se chegar a ter algum fruto de bênção, seja menino ou menina, levá-lo-ei como oferenda ao Senhor, e estará a seu serviço todos os dias de sua vida (...) [capít. 4. 1]»

domingo, 6 de setembro de 2020

UM POEMA INÉDITO

 O VOO É PRECISO

 

Para saber o que é o voo eu preciso de ter asas.
Um voo sem asas é como o vento sem ar, sem espaço,
sem um alento qualquer. É um ato indómito.
Um desespero a cair do céu na esperança de o alcançar.
A crescer sem uma meta é não saber voar.
É ter a derrota primeira, a segunda e a terceira. Depois mais.
Um voo sem asas é a morte agri-doce.
É um tempo escasso de indefinições abundantes.
É como se nada sentisse demais
Como se nada gostasse demais. Nada fizesse pensar demais.
Um voar assim é não desejar voar.
É apenas sossobrar no pântano raso e de negros fundos.
Sem asas, resta um esvoaçar de redes
submersas num rio seco. O voo verdadeiro é
de quem tem asas para sobre voar,
para quem quer ver mais além, ver o longe e os mantos de luz.
 
6/9/2020

Teresa Ferrer Passos