terça-feira, 28 de outubro de 2014

A decomposição do arco-íris



(carta aberta a Richard Dawkins)

Impossível prender o movimento:
As borboletas mortas na vitrina
Não são já borboletas.
As asas secas e esticadas
Não se misturam já na luz, modificando-a,
Fazendo nascer mais novidade
De cada instante novo.
Muito ao contrário:
A rede quadricular das posições
Daqueles cadáveres sem sentido
Captura os núcleos de mudança
Como milhões de peixes sufocando
Brutalmente arrancados ao seio do fluir
Das doces águas,
E o contemplar da colecção
Arrasta a nossa alma por um longo corredor néon gelado
Num ziguezague em linha recta
Entre museus e hospitais.

Borboletas da minha adolescência:
Pudesse eu devolver-vos à luz das florestas,
Ao ar perpetuamente renovado
Que crescia entre as agulhas de pinheiro
As flores do cardo agreste
E os muitos milhares de ervas-sem-ter-nome,
Para que o pó das vossas asas fecundasse,
Mesmo que tarde,
Mesmo passados quarenta anos,
As águas do rio que já secou,
Cansado de esperar a vida eterna,
O rio onde meu pai me levava pela mão,
Era eu criança,
E em cujas margens me ensinava a procurar
Por entre o doce marulhar da vida
Aquelas gotas de total silêncio
Que encerram todas as razões do universo.

Borboletas da minha adolescência:
Conjuro-vos!
Rebentai os vidros das vitrinas!
Batei de novo as asas!
Libertai-vos das pinças e do éter!
Voai até ao sol!

Trazei de lá,
Se quiserdes assim manifestar-me
Que me concedeis vosso perdão,
A prova de que Newton estava errado
E de que a luz branca é muito mais
Que um espectro envergonhado
De se ver nu no pó na cinza e frigidez
Do laboratório onde aguarda
A sentença à pena capital.

28/10/2014

Fernando Henrique de Passos

2 comentários:

  1. O que posso fazer a não ser levantar e falar alto:
    Bravo !

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    Respostas
    1. Obrigado, Luísa, sabe sempre bem ouvir as suas palavras de apoio!
      F.H.P.

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